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A incrível história dos livros voadores

Eras de ventos fortes e trovoadas ensurdecedoras em que livros voam. Coisa de doido. Pelas novas vias de comunicação, a mentira assola feito a tempestade dos infernos. As pessoas blefam com uma facilidade dos demônios, simplesmente, para demonstrar, de forma tosca, que o argumento do outro é uma porcaria qualquer. Já não se suportam, porque a ignorância reverbera e os intolerantes ganham fôlego com as suas idiossincrasias e o seu racismo estilo pé no pescoço. Vivemos uma época em que as pessoas que nada sabem querem opinar sobre, principalmente, aquilo acerca do que nunca ouviram falar. É uma puta celeuma.
Incrível mesmo é que os que realmente sabem ficam apreciando o ridículo que é um ente querer discutir o sexo do anjos sem nunca sequer terido às vias de fato com um. Anjo que se preza não vai pra cama com qualquer zé ruela.
Isto posto, a professora francesa Anne-Marie, estoicamente, se predispôs atravessar o grande oceano para vir fazer um intercâmbio quase inusitado no Brasil. Assim no estilo extremamente decidida. Do tipo ou vai ou racha, ou arrebenta a tampa da caixa. Ou rica dona do engenho, ou pobre puxando o bagaço da cana.
Há alguns anos, ela cursara ciências políticas, em nível de mestrado, na Sorbonne Paris VIII, e partira para uma pesquisa avançada na comuna de Neuilly-sur-Seine, um conglerado de sítios de camponeses antes sem terra, naquele ínterim, sob a orientação do socialista Nicolas Sarkozy.
Agora, pois, ela se meteu na aventura que é a descoberta do novo mundo, estes rincões sul americanos em que a vida do próprio humano não vale uma gota de porra nenhuma, ou o que o gato enterra, segundo foi percebido nas palavras de um magnata inglês ao ser inquirido sobre se ele não se importava em comprar o mogno brasileiro na Amazônia por um preço tão abaixo da realidade de mercado, ao que ele simplesmente respondeu:
– Ora, senhores. Se, naqueles lados do mundo, a vida humana não tem nenhuma importância, que valor eu posso dar para uma árvore de mogno? Já estou pagando é muito. Ora, pois.
E veio para cá a Anne-Marie, com os seus tufos de cabelo nos sovacos, assim meio que aos trambolhões, no olho da tempestade de intolerância que se instalou com a saída da presidenta. Poucos brasileiros entendiam o golpe. A maioria só atrapalhava, em vista dos parcos estudos. Apenas os analistas internacionais viam no conjunto das ocorrências que os fatores que levaram ao caos foram – e continuarão sendo – meramente propostos e levados à execução segundo o que pensam os americanos. Ô raça ruim!
Pois bem. Ela falava um português muito razoável e o intercâmbio, de seis meses, se fez acontecer na periferia da maior de todas as cidades brasileiras, onde a pesquisadora foi recebida, indiferentemente, como se ninguém fosse, uma vez que sequer foi apresentada ao grupo de professores secundaristas que ali mais reclamam da vida que dão exatamente aulas. Aliás, a diretora sequer lhe perguntou o nome.
Em anotação subsequente, ela registrou que tudo isso já era esperado, uma vez que, ali, a preocupação maior é com a sobrevivência de profissionais famintos que ganham salários irrisórios apesar da propalada riqueza arrotada em caviares e chamdons pela desmesurada elite paulistana, tão boçal quanto o Dória, um seu representante exacerbadamente maricas.
Um dia depois, então, foram reunidos uns duzentos alunos em um auditório embolorado e sombrio. Não havia sequer um microfone, mas, heroicamente, durante quarenta minutos, ela falou sobre as políticas de desenvolvimento social vinculadas à arte da produção literária.
Em seguida, ao toque de uma sirene que mais parecia de um presídio, hordas de estudantes enlouquecidos se dirigiram para os corredores. Mas é conveniente considerar que menos de um quarto deles permaneceu no auditório.
O que ela viu, então, deixou-a estarrecida. A secretaria de educação havia largado, ali pelas imediações, alguns fardos contendo livros didáticos das mais variadas disciplinas. Talvez uns cinco mil volumes.
Numa diversão patética, esdrúxula, ridícula, basbaque, os alunos abriram as caixas de papelão e passaram a atirar os volumes uns nos outros. Como se estivessem voando, os livros eram vistos passando através das janelas que não tinham janelas, e muito menos caixilhos. Loucura total.
A farra perversa demorou uns quinze minutos. Os exemplares ficaram todos estropiados, amassados, rasgados, fodidos. Alguns dos alunos se feriram, mas, o que foi anotado pela professora francesa veio mais tarde a se tornar o capítulo essencial para a defesa da sua tese de doutorado, cujo título passou a ser a incrível história dos livros voadores.
Cômico seria, se não fosse tão trágico e deveras ultrajante. Segundo anotações da pesquisadora francesa, a alienação é total. Realmente, a grande mídia que opera no terceiro mundo – e aí se inclui o Brasil – forja mentiras, falseia verdades, manipula informações, de modo a estar sempre colocando no bolso os menos favorecidos. Este é o modus operandi dos ricos que estão sempre dispostos a defecar nas cabeças dos pobres. Há uma falta de discernimento generalizada no que tange à percepção entre o que é falso e o que é verdadeiro, tendo em vista a manipulação geral que distancia, cada vez mais, os livros das pessoas mais humildes, estas que bem poderiam fazer as mudanças reais, posto que somam mais de uma centena de milhões de brasileiros aturdidos e colocados em confronto uns contra os outros. Os grandes canais de comunicação estabeleceram a intolerância como ordem do dia. É pobre fardado perseguindo pobre com fome e nenhum deles enxerga que o objetivo de todos é apenas o benefício da luz do sol dos justos.
No meio da guerra de informações verdadeiras e falsas (fakes), um ingrediente ainda mais caótico é colocado em meio ao caos. Os bons livros sumiram das vidas das pessoas. Nem pornografia se lê mais. Preponderam apenas informações que alienam, crescentemente, e os conceitos são entendidos da forma que querem os grandes pensadores da extrema direita. O real conceito de política, por exemplo, ficou já na poeira dos anos, pelo menos para a superior maioria dos brasileiros. Fazer política é tão somente falar mal do adversário que, hoje, é visto como o inimigo visceral que deve ser colocado fora de circulação.
Já não se diz nas escolas – e muito menos se lê nos livros, que sumiram – que a primeira política é a da boa vizinhança e a segunda é a do desenvolvimento social que beneficia a todos, indistintamente.
Um dia, o senhor Russel houve por bem deixar escrita alguma coisa parecida com a assertiva segundo a qual os estúpidos buscam a primeira fila com o intuito de aparecer, de serem vistos. Já os inteligentes colocam-se na retaguarda com o objetivo de apreciar o ridículo que é o grande espetáculo das atrocidades gerais.
Quando Anne-Marie escreve as suas verdades acachapantes, é porque já está cansada de ficar lá atrás da turba ensandecida apenas rindo dos infelizes. Ela quer ir à luta.
Convém que os livros deixem de voar e, enfim, pairem sobre as mentes deturpadas da imensa maioria destas gentes esquecidas do terceiro mundo.

Fabiano Azevedo: