Das asperezas da vida, os talentosos extraem sempre alguma coisa boa. Para eles, nem tudo é tão ruim. Sempre dá para tirar algum proveito do caos. Todavia, a realidade é estrábica com as pessoas que nascem e crescem sem fazer maiores esforços. Gente assim não apenas tende a ficar obesa, em vista da fartura e do sedentarismo, como não pode sentir uma dificuldade e já pensa logo em desistir de tudo. Pior é que, dentre os ditos filhos de ricos, as rotinas preguiçosas os conduzem aos vícios. O talento vai pelo caminho da morbidez. A busca, agora, é por escapar do cotidiano letárgico. E se escafedem. Morrem cedo.
Nada de ruim está previsto acontecer a nenhum de nós. Acontece porque tem que acontecer. Referindo-se ao casamento fantástico que fizera com a minha mãe, dizendo-se sortudo demais por havê-la encontrado, meu pai bradava aos quatro ventos que casamento é que nem topada: ou você vai pra frente de uma vez, ou toma uma senhora queda e leva um bocado de arranhões nos joelhos e na cara. Pense num sujeito talentoso. É mesmo assim a vida que Deus nos dá de presente. Ora, pois.
Então, eu quase vi tudo acontecer mais ou menos assim…
Um feixe de luz intenso, azul clarinho ou branco, se desprendia das nuvens rarefeitas de uma daquelas noites claras de sono, suor e sonhos mirabolantes. (Rico ri à toa e pobre tem mania de sonhar, inclusive, acordado e com fome.)
Era verão no hemisfério sul. Um vento brando, morno, ou quase isso, temperava a atmosfera agora iluminada por uma réstia pálida de luar. O rio, muito largo, não permitia a ninguém vislumbrar as margens perdidas na imensidão. Mesmo de dia, tal fator impressionava a quem quer que fosse. A água mansa e lisa era cortada pelo farfalhar provocado pelas hélices do pequeno vapor amazônico. Um pássaro noturno qualquer dava sobrevoos e soltava pios tão estridentes que se faziam ouvir, apesar do barulho da casa de máquinas. O jantar fora servido cedo e, agora, algumas pessoas trocavam impressões acerca daquela viagem formidável através do grande caudal. (O rio Amazonas proporciona vertigens em que o caboclo pensa duas vezes antes de nada fazer, porque está com pouca vontade de fazer coisa alguma, e pega no sono.)
No tombadilho da embarcação, por segundos, o menino se fizera ofuscar por uma luz que provinha dos céus. A mãe, bem próxima dele, percebeu o fenômeno, mas nada comentou. Não seria uma estrela cadente. Impossível. Se a lua estava a oeste, não havia explicação para aquela espécie de aurora boreal em ares tropicais ter ocorrido de forma tão rápida e exatamente a leste. Entorpecida pela brisa e pelos cheiros noturnos do rio, ela logo esqueceu a ocorrência. Talvez um dia viesse a lembrar. Quiçá.
Ela pensava no pai, exímio jogador de cartas e dono de uma roleta de jogo do bicho, segundo quem palpite de banqueiro é bom, porque quando não ganha, perde. Junto com o filho, estavam mudando de cidade e nada de ruim aconteceria. Não havia porque dá erro. Estava tudo acertado. Seria professora na capital e ensinaria, inclusive, aquilo que sequer conseguira aprender. Não era tão forte no quesito evolução, para não falar de inteligência.
Agora aos seis anos, o pequeno príncipe, conforme costumava denominar a mãe, portava retinas clarinhas de topázio e cabelos negros meio lisos ou levemente ondulados, além de um nariz adunco em vista da descendência judaica. Olhares penetrantes viajavam com a rapidez de um raio. Uma pele clara de leite desnatado lhe compunha a paisagem pessoal e intransferível. Calçava botinhas de couro e meias até quase o joelho. As calçolas, de casimira azul marinho, e a camisa branca em mangas de punho emprestavam a ele um certo ar de fidalgo. Nascera para observar e fazer anotações, que viriam a ocorrer apenas muito mais tarde, na adolescência, quando a cama e o travesseiro começassem o seu diálogo noturno.
Nada disso era real. Estivera a mãe em um sonho romântico, delicioso, um tanto lírico, colorido, iluminado, daqueles que nem mais dá vontade de acordar. (Coisa de mulher abobalhada que continua sonhando com um príncipe vagabundo que lhe plantou um filho e fugiu para o Maranhão.)
Mais tarde, muito mais tarde na vida, o menino passou a fazer ponderações acerca da condição humana. De olho no telhado acima da cama de campanha, já em sonhos febris em que moças nuas imaginárias desfilavam na penumbra do quarto, ele pensava no que uma tia lhe falara a respeito das habilidades com que cada humano nasce. O vizinho da esquina próxima diz versos de cordel como poucos, apesar de ser cego de balançar a cuia. O outro, da rua perpendicular, faz sapatos com imensa maestria. O moço que abrilhanta os bailes com a sua sanfona e a senhora que o acompanha ao violão são divinos, assim como a professora bonita ao piano. O homem de pele escura faz o pandeiro sorrir e escreve sonetos de amor. O outro esculpiu em cimento uma imagem do padroeiro. A mocinha que ensina as primeiras letras é prodigiosa e quase obra milagres ao ensinar com uma certa facilidade a tantas crianças a arte de emendar letrinhas e juntar números. Coisas de Deus.
Pensando bem, o talento é mais barato que a luz do sol em qualquer hora do dia. O que separa o homem ou a mulher de talento daqueles que se dão bem na vida é um rio de suores vertidos em vista da crueza dos esforços cotidianos. Progredir requer tutano e esforço. Vamos ao serviço!
Ademais, é perceptível a olhos nus o fato de que aqueles que são abençoados com o maior talento não têm, necessariamente, um maior desempenho que todos os outros. São as pessoas que levam as coisas do princípio ao fim que brilham. Viaja-se do sonho ao projeto e à ação de conformidade com a vontade que cada um tem de ver os seus objetivos plenamente alcançados. Enfim, é como prega o velho ditado nortista, é preciso ter fé no talento de Deus e botar o pé na tábua.
E vem a luz que faz surgirem os iluminados. No entanto, há os que apagam a sua própria lamparina, desperdiçam os seus sonhos, não têm, ou não buscam (não lhes deram) as oportunidades, e habitam o limbo sombrio e letárgico das frustrações tão próprias da modernidade.
Um dia, o menino contador de estrelas anotou o que leu nos alfarrábios de um livre pensador e sonhador de ofício qualquer. Era uma parábola cheia de efeitos gerais.
Nas madrugadinhas dos dias ímpares de um mês e dos dias pares do outro, o Criador se dispõe a operar umas das suas tarefas mais nobres, até porque todas o são. Sonolento e não muito confiante nos milhões de gigas do seu computador ultramoderno, Ele sai em viagem, talvez de visita, através das mil quatrocentas e dezenove esquinas da Terra. (Muitos cantos assim é porque o planeta em que vivemos nunca teve nenhuma pretensão de ser quadrado justo em vista da competência Divina.)
E por aí vai Deus, na boa. De posse de um alforje de couro de lhama cheio até o cordão de um pozinho azulado e luminoso, Ele espalha pelo mundo inteiro aquela substância encantada, como se estivesse jogando tempero numa panela gigantesca. É assim que o Divino opera a distribuição de talento; e este vai caindo sobre a cabeça de um sem número de humanos, independentemente de raça, origem social ou credo. Por isso, há os gênios amarelos, sunitas, negros, índios, etíopes, cristãos, judeus e muçulmanos. Aqui entre nós, no mundo dos homens, é que as relações humanas deixam de dar oportunidades de progresso a muita gente talentosa que, mesmo assim, em grande parte dos casos, teima em se fazer sobressair.
É mesmo assim. Basta prestar atenção àquele doutor em engenharia não-sei-das-quantas. Deram-lhe oportunidades e, hoje, ele pilota um Boeing no trecho entre Paris e Tóquio. O pai e a mãe eram seringueiros que nunca aprenderam a ler. São as semeaduras do Divino.