X

Quando matemática e cultura se enfrentam: mudanças climáticas e hábitos alimentares

Recentemente um colega me pediu para analisar um artigo científico sobre a agricultura brasileira e suas tendências. Na ciência é comum pedir opiniões de outros cientistas para testar se as conclusões propostas se baseiam em evidências fortes ou fracas.
O artigo, escrito principalmente por cientistas ligados a Universidade de São Paulo e Imaflora em Piracicaba, São Paulo (citado no fim deste texto), compara as fontes de proteína animal e vegetal e chega à conclusão de que a agropecuária brasileira em 2006 poderia ter fornecido os alimentos ou os recursos para atender as necessidades fisiológicas (50g por dia por pessoa) para 1,3 bilhões de pessoas via proteína vegetal – equivalente a quase a população da China – e 66 milhões de pessoas via proteína bovina (um terço da população do Brasil). Produzimos em 2006 um fator de 20 vezes mais de proteína vegetal do que de carne.
Isto aconteceu quando a área de pasto foi 2,4 vezes maior do que a área de cultivos – 160 milhões de hectares versus 61 milhões de hectares. Nem toda a área de pasto seria apropriada para produção de grãos, mas mesmo assim, a eficiência da produção de proteína via cultivo de soja e milho foi cerca de 32 vezes maior do que a produção via criação de gado. Esta diferença não foi uma ou duas vezes mais, mas trinta vezes.
Tal diferença é esperada por razões de leis ecológicas, que por sua vez são baseadas em leis físicas de conservação de massa e energia. Quando se sobe na cadeia alimentar, ou seja, muda de comer grãos para comer bife de gado que comeu os grãos, a energia e massa como proteína disponível é muito menor. É a razão porque onças e carnívoros em geral, são relativamente raros quando capivaras, pacas e outros herbívoros são relativamente abundantes em ecossistemas naturais da região Amazônica.
Em termos de clima, a geração de gases de efeito estufa varia muito entre as fontes de proteína no Brasil, segundo os autores, entre 2 toneladas por tonelada de proteína vegetal versus 283 toneladas por tonelada de proteína bovina. Ou seja, o impacto na emissão de gases de efeito estufa é 100vezes maior, comendo proteína bovina do que proteína vegetal.
Fiquei convencido pela matemática. Os meus netos terão a minha idade na década de 2070quando no mundo está previsto ter 10,5 bilhões de pessoas. Hoje em dia temos cerca de 7,6 bilhões. Estas pessoas em 2070, cerca de 3 bilhões a mais do que temos hoje,vão precisar de alimentos, especialmente proteína. Como eu dou palestras e escrevo artigos sobre os impactos de mudanças no clima, tento alinhar as minhas atividades com o meu discurso e seis meses atrás reduzi o consumo de carne e peixe a quase zero. Continuo consumindo proteína animal na forma de ovos e produtos de leite, portanto não me considero um vegetariano.
Um amigo da Etnia Huni Kuin me falou sobre a dificuldade que ele teria para parar de comer carne. No caso dele, a carne de caça não entra neste cálculo e tem relativamente pouco impacto no clima. Também, se eu for convidado para jantar na casa de alguém que não conhece as minhas preferências alimentares, eu vou comer com gosto uma picanha, apesar de que as bactérias no meu intestino poderão ter agora dificuldade de digeri-la.
De fato, eu já sabia faz anos (melhor dizer décadas) do impacto das minhas escolhas de alimentos. O que eu precisava era um choque de números para mudar o meu hábito alimentar. A minha inércia social era grande. Já testei este argumento com colegas que eu considero esclarecidos em termos dos problemas ambientais que enfrentamos, mas até agora eles reagem como eu reagia e continuam a comer carne.
“Salvar o planeta” é uma frase bonita, mas infelizmente não muito efetiva para mudar o nosso comportamento alimentar; afinal são poucas as pessoas que dão palestras sobre este tema e que se sentem constrangidas em continuar a comer carne. Apelos para melhorar a saúde pessoal talvez sejam mais efetivos.
Um fator interessante é que estou sentindo melhor sem comer carne e continuo treinando para rugby, sem problema. Em outras palavras, não preciso comer carne para manter a força física. Aliás, existem indicações de que no Brasil, ou pelo menos em São Paulo, o consumo de carne bovina é excessivo e pode ser prejudicial à saúde, aumentando a taxa de mortalidade.Numa escala mundial, uma estimativa dos efeitos de mudar a base de proteína na dieta de carne à de planta,indicou que os benefícios para a saúde seriam na mesma magnitude aos benefícios ambientais, cerca de 1 a 31 trilhões de dólares em 2050.
Então, temos motivos relacionados à saúde, à economia e à redução das emissões de gases de efeito estufa na Terra para mudar os nossos hábitos alimentares. Resta saber se estes motivos conseguirão produzir a mudança cultural que precisamos.

Referência central: Sparovek, G, et al. 2018 Asymmetries of cattle and crop productivity and efficiency during Brazil’s agricultural expansion from 1975 to 2006. Elem Sci Anth, 6: 25. DOI: https://doi.org/10.1525/elementa.187. Outras referências estão disponíveis via contato com o autor.

Fabiano Azevedo: