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Nervos em frangalhos e libido à flor da pele

Um carma se apoderou da alma do aprendiz de analista. É assim desde os primeiros séculos desta era de promiscuidade e conurbação de sentimentos. Os ancestrais masculinos foram nascendo e se desenvolvendo de olhos vidrados na trilha da gatunagem e da malversação, num país onde tais práticas são mesmo corriqueiras. Enquanto isso, com as fêmeas, as coisas vão sendo tocadas na marra, na maioria dos casos amparadas pelas sombras da noite, e as finanças às vezes regurgitam nos desvãos dos pares de coxas que se abrem e pouco se fecham, ou no vai-e-vem dos quadris de quem quer que seja, numa alusão ao Cazuza. Uma loucura.

Estava na caixa de entrada escrito Tia Berta. E ainda não era abril, mas a temporada de caça ao corvo dourado estava aberta.Pensou que ela já tinha sido encontrada por uma bala perdida, posto residir em área de alto risco, bem próximo do Alemão complexado. Estremeceu dos pés à cabeça. O medo de calote dos parentes desanima as almas mais virtuosas. Trata-se de uma raia miúda, sem escrúpulos, que busca sempre passar a perna nos demais seja na posição que for, ou naquela que melhor aprouver.

Estupefato total com a surpresa daquela manhã, abriu o e-mail e, como um chiclete velho, foi mastigando, enfastiado, a contragosto, cada palavra da correspondência eletrônica que lhe foi enviada pela parenta. Uma intimidade pai d’égua.

Ela reclamou da vida aos borbotões. Falou das dívidas eternamente crescentes, do cartão de crédito e da conta bancária sempre no vermelho. Chorou um rosário de pitangas em lágrimas de crocodila. Maldisse o dia em que foi dada à luz, lá nos sopés esverdeados dos Andes. E tome chorumela.

Depois de relatar que o filho, o priminho Charles De Marco Bezerra de Albuquerque – empresário de negócios sujos e mão aberta, rei dos morros da Providência e do Juramento – continua foragido nas Ilhas Galápagos, no Pacífico, contou que está perdidamente apaixonada por um boyzinho de vinte e seis anos, o Blau-blau de Vigário Geral. Ela, de sessenta e poucas voltas, paga a ele um bom soldo, em notas de cem, uma em cima da outra, como se estivessem copulando, mas o fulaninho a deixa em polvorosa e se acompanha com uma maria trepadeira – segundo ela! – com quem vagabundeia em fins de semana que chegam a durar quatro dias. Dá-lhe, garoto!

Toda a correspondência passava dos quarenta kilobytes. Então, para sintetizar, a frase final da coitada da titia desesperada de Inhaúma foi a seguinte:

– Estou apanhando igual mulher de malandro. Eu dou amor, sexo, roupas caras, comida de primeira, carro, apê e grana. Ele me beija, me abraça, me lambe, me joga na parede e me chama de lagartixa. Depois, diz que eu sou a mulher da vida dele, mas se vai para ficar dois ou três dias na companhia da putinha de dezoito primaveras. E o pior é que eu morro de tesão e de medo de mandá-lo embora. Posso até cometer suicídio, viu?

Ao que o analista respondeu, já no dia seguinte:

– Pode, sim, titia. Use uma corda. Quem não pode com o pote não pega na rodilha. Quem pariu mateus que o embale. Puta velha mais rodada que o engenho da rainha não pode cair numa dessas. Um coroa sessentão, aposentado e carregado de comprimidos sintéticos azuis que ativam a libido, seria muito mais rentável. Você ainda tem borogodó. Mas gosta de cutucar o cão com a vara duríssima. Tome-lhe!

Beldade passada na casca do alho dos subúrbios paulistanos, década de setenta, minha tia tem um corpo ainda escultural, apesar das tantas voltas ao redor do sol, e dos fretes nem sempre a bom preço. Nem é preciso dizer que a alma fede a sexo apressado, medroso ou com raiva. Nasceu nos rincões longínquos mais ocidentais do Brasil e, ainda em criança, foi levada pelos pais para a àquela época denominada terra da garoa.

Bacana é que a Tia Berta adora postar nas redes sociais imagens de si própria em que os milagres malucos do photoshop enganam milhares de incautos e bêbados sem substância. Difícil é ouvi-la dizer que nunca usou filtros tridimensionais, e que ela, ao vivo, é melhor que nas fotos; que está ainda uma uva e nunca chegará a abacaxi. Carácolis!

Foi por intermédio dessas traquitanas cibernéticas que, nos anos noventa, ela engatou envolvimento com um advogado de altíssima linhagem. Paulistano rico e dado às armações e bizarrices jurídicas próprias dos grandes jurisconsultos brasileiros de porta de cadeia, muito bem cabia nele o adágio popular segundo o qual a diferença entre a prostituta e o advogado é que a primeira deixa de usurpar o cliente depois que este morre. Lindo.

O único filho, Charles – com o S chiando – nasceu no bairro calmíssimo de Francisco Morato e por ali foi sendo criado sem muito o que fazer, posto que escola não era do agrado de ninguém. Andou envolvido com uma moçoila de programa em Vila Carrão e teve um filho, ao mesmo tempo em que fazia estágio avançado em Capão Redondo com armas de pouco alcance. Depois, fez aperfeiçoamento em Ermelino Matarazzo, no grosso calibre, e, enfim, estava preparado para assumir o desiderato dos da sua estirpe ranzinza.

Foi morar na maravilhosa levando consigo Tia Berta. O mercado de trabalho sempre foi muito bom e ele passou a colocar em prática tudo o que aprendeu nas universidades da periferia paulistana. O empreendimento prosperou como chuva de outono. Armou, se deu bem e por ali viveu uns doze anos, até ser enxotado para as Galápagos, onde vive de renda com as subvenções do negócio pagas em reais ou dólares. O cara é bom no que faz. É ele o primo esperto, louro, com olhos, nariz e boca postiços, nascido e criado nas grandes metrópoles.

Em verdade, é preciso considerar as palavras do poeta e analista da vida alheia, segundo quem, aqui, nestas paragens tupiniquins, todos são ensinados desde muito cedo a contar regalia porque deu a loba em alguém. Na periferia, como na faixa onde moram os ricos, é praxe o pacato pagador de impostos se deparar com meninos, ou com meninas, contando vantagem sobre uma situação qualquer em que conseguiu tirar proveito em cima até mesmo da bondade de um ou outro que ainda tenta ou consegue fazê-la.

A grande maioria já nasce enquanto réplica e projeto de um contraventor ou criminoso qualquer que há de tirar proveito, notadamente, em cima do que não é exatamente seu. Vive-se, na maior tranquilidade, a prática de crimes corriqueiros mínimos e sem tanta importância, posto que, enfim, o ambiente é propício. Por isso, poucos sabem e ninguém ensina os limites entre o lícito e o ilícito. Daí os pequenos corruptos crescem e a pátria se torna uma casa de mãe joana, com o respeito devido à vetusta choperia carioca.

Em síntese, temos fomentado e até aplaudido uma escola de contravenção e delitos de todos os naipes do baralho de cartas marcadas.

Convém lembrar, para fazer uma coroação à altura desses escritos disformes, o grande senhor Zweig, segundo quem, da mesma forma que ao bem ocupado não há virtude que lhe falte, ao ocioso não há vício que não o acompanhe. Ou, como se diz mais a nordeste, mente vazia é oficina da besta fera. Importa ficar rico, sim. Só não é preciso revelar os meios, senão a polícia sabe e vai querer o que lhe é de direito.

E vejamos no que deu. O advogado sumiu, uma vez que a coisa murchou. O boyzinho se foi, porque a fonte virou piada.  Dólares não transitam do Equador – Galápagos – para esta pátria desamada. (Daqui pra lá pode, claro. Eles não são bobos.) A Tia Berta, então, de tanta abertura por esta vida afora, viu que a vida que ela pediu a Deus, enfim, deu adeus e o endereço do sobrinho é não sabido e jamais revelado.

Sem bater e sem fazer mesura, a miséria foi entrando pela porta da sala, enquanto a vergonha fugia pela janela da cozinha.

Cruzes! Jacarés que a comam em meio ao labirinto do pantanal!

CLÁUDIO MOTTA-PORFIRO

Escritor. Autor do romance ANJOS DO SOL POENTE, disponível na Amazon.com>

Fabiano Azevedo: