Ministério Público do Acre atua com atendimentos à vítima através do CAV
Gilete em mãos, quarto vazio, alma sangrando e a vontade de viver cada vez menor. Este fora o cenário perfeito para Geyse Nascimento, a época aos 13 anos, tentar suicídio a primeira vez. Vítima de violência sexual, a menina, abusada por duas pessoas da família desde os seis anos de idade, havia cansado de viver.
“Ela [a gilete] estava novinha, então pensei: vai funcionar”, contou à reportagem sobre a tentativa de cortar os pulsos. “Não tive êxito porque tenho medo de sangue e quando começou a sangrar tive um desmaio, o que impediu que concluísse”, relata.
Hoje, aos 28 anos, casada e mãe de três filhos, ela rompeu o silêncio. O que ainda lhe custa muita dor. Em vários momentos da conversa, o choro era inevitável. A mulher forte e de muita garra ainda carrega dentro de si uma ferida aberta.
Recentemente, o desabafo surgiu em uma página na internet quando postou em uma publicação como se tivesse deixando um recado para ela mesma no passado.
“Olá, menininha, as coisas não serão fáceis para você, já que será abusada por quem só deveria amar e cuidar de você. Mas não se sinta culpada. A culpa não é sua. Não precisa querer ser feia só para que não te olhem. Não permita que a ansiedade e a depressão te façam tentar se matar. As coisas não vão ficar fáceis quando crescer, mas você vai dar conta do recado. Virão três lindos filhos e eles serão a tua força a tua garra para continuar seguindo em frente. Eu tenho um enorme orgulho de você que resistiu a tudo, aguentou cada trauma, cada violência, cada humilhação e continua viva. Você nunca teve culpa. Eles é que eram uns monstros!” (sic)
O relato de Geyse, hoje aos 28 anos, é a história de alguém que vem superando seus traumas de um abuso que ficou no passado. Mas a história não. Esta ainda é presente nas marcas que carrega e na vida de centenas de milhares de crianças que ainda são abusadas diariamente.
Este é um dos grandes desafios da contemporaneidade. Enquanto há crimes que são gritados nas ruas e recebem o repúdio da população, a violência sexual teve um aumento de 83%, contudo, poucas pessoas falam no assunto.
As complicações do abuso vão além da repulsa ao abusador. A adolescência complicada, os relacionamentos malsucedidos. O envolvimento com a bebida, fumo levou-a a problemas nos pulmões e anemia. Além das crises de ansiedade, a paranoia que a levaram a segunda tentativa de suicídio aos 20 anos.
A trajetória de Geyse é o reflexo do que acontece a centenas de milhares de crianças e adolescentes que são silenciados pelo medo, pela culpa e desconfiança.
A menina violada teve que vencer muitas barreiras para encontrar um pouco de paz. “Hoje eu sou uma leoa. Posso me defender. Mas há momentos nos quais preciso repetir isso várias vezes para mim mesma, para ter certeza de que quem me fez mal um dia, não pode mais.”
O medo de chamar a atenção sentir-se feia, dão lugar a roupas vibrantes, batons vermelhos. Embora a certeza de uma dor que dure a vida inteira, existe a certeza de que não há culpa que deva carregar.
Estupro
Segundo o Código Penal Brasileiro, estupro é constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.
O Ministério da Saúde considera violência sexual os casos de assédio, estupro, pornografia infantil e exploração sexual. No conjunto destas especificações, a mais praticada é o estupro que chega a 62% em crianças e 70,4% em adolescentes, de acordo com o boletim epidemiológico divulgado pelo Ministério da Saúde.
Para o filósofo grego Platão, “o importante não é viver, mas viver bem”. Diante deste contexto revela-se a necessidade do cumprimento da lei para que estas crianças deixem de ser negligenciadas na fase mais vulnerável da vida. Aquela na qual requer ser cuidada. Não abusada.
As consequências do abuso
“Eles tiraram minha infância. Destruíram minha adolescência e hoje, na fase adulta, decidi perdoar, mas ainda carrego as consequências de um problema pulmonar causado pelo excesso de fumo, e as lembranças terríveis do que fui obrigada a viver”, relata Geyce Nascimento.
Depressão, insegurança, agressividade, desempenho escolar comprometido, perturbação do sono, transtornos alimentares, medo, mudanças de comportamento, não querer ir a certos lugares, ou encontrar “certas pessoas“. Estes são alguns exemplos das consequências drásticas que o abuso pode causar.
A tentativa de suicídio e até a consumação do ato, pode ser mais comum do que se imagina. O relato de Geyse é apenas um entre milhares.
“Hoje, falar sobre o assunto, para mim, é uma forma de me libertar. Mas também luto contra a ansiedade. A verdade é que vai doer para sempre”, conclui Geyce.
A psicóloga Fernanda Saab alerta que “é importante ouvir as crianças e demonstrar o quanto acredita nelas, deve abrir espaço para diálogos sobre sexualidade e reflexões sobre tabus, crenças, valores, estar sempre perto e procurar algum profissional como psicólogo”, complementa.
Os traumas podem se manifestar de várias formas. E o abuso pode vir de alguém próximo e até mesmo por desconhecidos que atacam de forma violenta, como relata Maria Cláudia, 20 anos, que passou por uma situação de risco.
A vítima conta que aos nove anos, quase foi estuprada por um desconhecido. A perda da mãe muito cedo, deixou um pai com a incumbência de criar os filhos sozinhos. A ausência era usual por causa do trabalho realizado na zona rural, a vulnerabilidade tornara-se ainda maior, os irmãos cuidavam uns dos outros. Mas os riscos eram reais.
“Ia sozinha para a escola. Certo dia, um homem, que vivia no portão de sua casa e toda vez me cumprimentava, chamou-me para entrar. Na inocência, entrei e ele me jogou na cama e começou a passar a mão nas minhas partes íntimas, gritei e saí correndo. Escondi-me no mato. Fui levada para casa por uma que me encontrou escondia”, relata.
A jovem relembra que ao chegar em casa não queria contar o que havia acontecido, pois ele havia jurado a de morte, mas mesmo assim contou aos irmãos. Eles ligaram para a polícia, foram para a delegacia para fazer o boletim de ocorrência e o homem foi preso.
“Tento levar uma vida normal e esquecer, mesmo que eu não consiga entender o que aconteceu”, lamenta o episódio que assustou sua infância. O mesmo ocorre com milhares. Pois o abusador tem face de confiança.
Ministério Público realiza atendimento à vítima
Em meio a esse cenário de abuso e violência, o conhecimento sobre o assunto, a consciência de que é preciso denunciar e até mesmo acompanhamento, faz parte de um processo que se torna menos doloroso quando se sabe a quem recorrer.
O Ministério Público do Acre (MPAC), por exemplo, atua através do Centro de Atendimento à Vítima (CAV), no qual realiza atendimentos profissionais nas áreas de psicologia, serviço social e direito, desde o ano de 2016.
De acordo com a coordenadora de Administração do CAV, Luciana de Carvalho Rocha, nestes dois anos, são atendidas vítimas e familiares de mulheres vitimas de violência doméstica, população LGBT+ e pessoas vítimas de crimes sexuais.
A princípio o atendimento era voltado a maiores de 18 anos. Porém, devido a procura pelo serviço, acabou por ser estendido para atender também às vítimas de abuso sexual infantil, segundo explica a coordenadora.
“A gente foi percebendo que o estado do Acre tem um número altíssimo desse tipo de crime e que a gente precisava atuar de alguma forma”, explica.
No CAV, a vítima recebe uma média de 16 atendimentos, nos quais são ouvidas e têm a oportunidade de participar efetivamente do processo penal não apenas como testemunhas.
Além disso, recebem informações sobre os direitos que possuem atendimento à saúde emocional para superação do trauma e também tem acesso a serviços psicossociais para ajudar na reinserção em atividades laborais, social e até mesmo familiar.
Atualmente, cerca de 50 casos são acompanhados pelo CAV. Mas o projeto do MP é a criação de um núcleo que direcione o atendimento apenas para crianças. Uma vez que Acre aparece como um dos campões do abuso sexual infantil, segundo o Mapa da Violência.
Parcerias do MPAC
O Ministério Público, por meio do Centro de Atendimento à Vítima, possui parcerias, relacionados à saúde, assistência social e segurança, com instituições como: Conselho Tutelar, Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social), Maternidade Bárbara Heliodora, Delegacias, Defensoria. Nessa rede de atendimento existem duas portas de entradas, saúde e segurança.
“Essas crianças ou seus responsáveis chegam até a delegacia para fazer algum tipo de denúncia ou vão para a maternidade, que, aqui em Rio Branco, é centro de referência para atendimento à violência sexual em caso de meninas, já os meninos são atendidos no Hospital de Urgência e Emergência de Rio Branco (Huerb)”, diz Luciana de Carvalho.
A coordenadora relata ainda que esse tipo de crime é extremamente difícil de ser erradicado, até pelos altos índices de violência no estado e no Brasil como um todo.
“Para erradicar esse crime é um trabalho de mudança de paradigma. Vemos no interior muitos pais que falam: ‘eu plantei a bananeira, vou colher o primeiro cacho’.”
Segundo relata Carvalho, diante deste contexto, o incesto é comum e naturalizado ainda, o que gera o silêncio das pessoas em torno desta temática.
“Geralmente, quando identificamos essas situações descobrimos que a professora sabia, a mãe sabia, que alguém da comunidade sabia e, por algum motivo, essas pessoas não têm coragem de denunciar. É preciso fazer todo um trabalho de conscientização, prevenção e punição, mas, principalmente um trabalho que envolva as pessoas que atuam na área e a sociedade civil como um todo”, revela.
Luciana explica também que o crime de abuso sexual precisa ser coibido não só com a punição do agressor. “O CAV trabalha com um projeto que chama ‘Criança não é brinquedo, adolescente não é objeto, projeto não permitiremos’.
O intuito do projeto é levar informação dando palestras em escolas, reuniões com a rede orientando as pessoas de como procurar e onde procurar ajuda e o que é o abuso sexual infantil.
Ela relata ainda que cada cidadão é responsável por denunciar esse tipo de crime e não é possível que se tenha conhecimento e não tomar atitude, até para não cometer crime de prevaricação.
Para fazer denúncias dessa natureza a pessoa pode ir à Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente (DEPCA) que atua junto a Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam), ligar no disque 100, ou ainda se dirigir ao Ministério Público na Primeira Promotoria Civil, responsável por receber as denúncias.
Atenção da família é fundamental no combate ao abuso
Segundo dados divulgados pela Ouvidoria nacional do Ministério dos Direitos Humanos, em 2017, foram registradas 84.049 denúncias de violações contra crianças e adolescentes, através do disque 100. O número é 10% a mais do que o registrado em 2016.
Em Rio Branco, a Casa Lar Ester, que atua há vários anos, atende meninas vítimas de abuso, com idade entre sete e 17 anos. Já foram atendidas, ao menos, 500 meninas ao longo deste período. Elas vão com encaminhamento da Justiça e Conselho Tutelar. No local, elas recebem ajuda para superar os traumas da violação sofrida.
Elas são como Ana, 32, (nome fictício) em um dado momento receberam algum tipo de carinho que estava travestido de abuso, e então tiveram a inocência violada. E hoje precisam lidar com a ferida invisível que pode sangrar por toda a vida.
“Tinha uns oito anos quando comecei a perceber que durante a madrugada alguém passava a mão em mim. Como era tudo escuro eu olhava e não via ninguém, mas tinha a impressão de sentir que alguém saía de lá, e, só podia ser meu padrasto”, (fez um silêncio após o desabafo, as mãos cruzadas e o entalo na garganta).
Desta forma, Ana conviveu durante toda a infância com o medo. Fugindo como uma caça do predador. O sentimento, segundo relata, é como se fosse a mais frágil dentro da cadeia alimentar. Para onde quer que fosse sentia o cheiro da ameaça.
A vítima conta que ele [o padrasto] gostava de acariciar seu corpo e quando contava para a mãe, ela não acreditava. Ana lembra que a mãe saía e a deixava sozinha com o agressor. Para proteger-se ela se escondia, trancava-se em um quarto nos fundos da casa e chorava baixinho, quieta para que ele não a encontrasse.
A assistente social, Elaine Martins, que atua no Centro de Referência Especializada da Assistência Social (CREAS) de Senador Guiomard, diz que o ponto principal, nesta situação, é o cuidado da família em orientar e apoiar, caso a criança ou adolescente relate sobre o abuso.
“A família precisa estar atenta, pois, muitas vezes, o violador é uma pessoa próxima, que tem a confiança da criança ou do adolescente. É necessário manter um diálogo frequente, preventivo, e quando surgir a problemática ser a família a primeira a acreditar na possibilidade e então buscar a verdade e denunciar”, pontua a profissional.
Além disso, acrescenta que a família é essencial na recuperação física e emocional da criança que sofreu abuso sexual. E nunca deixar de lado quando a criança falar sobre o assunto.
O não reconhecimento do abuso
Abuso. O termo não poderia ser melhor empregado. Já que a prática, geralmente, parte de pessoas do seio familiar, amigos, vizinhos, pessoas que estão sempre por perto e agem com cinismo para seduzir a vítima.
O caminho para o abismo é percorrido de forma cega, por pessoas que precisam de direcionamento para seguir o caminho de formação de caráter e personalidade.
“Um cuidadoso ritual de sedução é introduzido pelo abusador, dificultando à criança o reconhecimento da prática como abusiva. Por ser praticado predominantemente por membros da própria família, é muito frequente o uso da relação de confiança existente entre o adulto e a criança/adolescente, em favor do abusador”, descreve a psicóloga Fernanda Saab.
Ademais, ao contrário do que muitos podem imaginar, de que este seria um problema de origens nas classes sociais mais baixas, é desmitificado pela psicóloga Fernanda Saab. “O abuso acontece em todas as classes sociais. Não está ligado à pobreza, miséria, ou ao subdesenvolvimento. Acontece em todas as camadas sociais”, afirma.
Além disso, ela alerta para a existência da idade da vulnerabilidade, ou seja, a maioria dos casos acontecem dentro da faixa etária de 0 a 11 anos. Entre 12 e 14 anos em torno de 30,3% e entre 15 a 17 anos em média 20% dos números registrados. Quanto mais novos, maior a incidência.
Como é possível notar pelo relato das personagens entrevistadas pela reportagem, cuja idades relatadas são de seis e oito anos respectivamente.
Os casos registrados esbarram na dificuldade da falta de informação. Às vezes, a vítima é coagida pelo agressor e, na maioria, sequer, a criança tem conhecimento do que está acontecendo. Não sabe que se trata de uma violência, segundo pontua a assistente social Elaine Martins.
“Infelizmente uma das dificuldades encontradas ainda é a carência na prevenção do abuso sexual infantil, seja na escola, na família, na sociedade em geral. Ainda fecham os olhos para essa realidade, muitas vezes pela falta de preparo em lidar com a problemática”, afirma.
Para a assistente social, as dificuldades no combate ao abuso começam quando, muitas vezes, o familiar prefere não acreditar na criança, ou mesmo após denunciar ficar ao lado do agressor ao invés da vítima.
“Finalizo dizendo que violência sexual é crime e deve ser sempre reportada às autoridades, não é necessário você ter certeza, ou ter testemunhado um fato, se você suspeita de que algo possa estar errado, pode denunciar anonimamente através do Disque 100 (Disque Direitos Humanos), ou recorrendo ao Conselho Tutelar mais próximo”, conclui Martins.
Fotos: Juan Diaz