Vivi e vi por aí afora gentes e pessoas. As primeiras estavam sempre acordadas, vibrantes e aguerridas, e as segundas sempre a quase dormir, como se não fossem deste plano material. Enquanto muitas vêm para a vida cheias de atitudes, como se estivessem em um folguedo, ou em um campo de batalha, outras se entregam a um ostracismo e a uma apatia que as tornam quase androides. São estes seres, letárgicos e sem ritmo, que vivem e morrem e não ouvem as notas e os tons da sua música, porque nunca se atrevem a tentar.
A irmã mais velha, hoje falecida, fazia parte do primeiro grupo, mas ia muito além e exagerava nas doses gerais. Exasperada, diuturnamente, tinha sangue no olho e os óvulos no pé da goela. Por pouca coisa, ia a mão ao pé do ouvido e a joelhada no baixo ventre. Era valente, brava, destemida e, nos seus cabelos alvoroçados, se assemelhava, no mais das vezes, ao siri dentro da lata.
Nos anos quarenta do século passado, apareceu na cidadezinha uma família de sertanejos vinda do Ceará. Era gente de pouca ou nenhuma posse. Traziam às costas uns sacos miúdos com alguns trapos e muita vontade de vencer a fome. Arrastara-se em navios fétidos desde o sertão brabo da Meruóca. Iriam trabalhar no seringal São Pedro. Mas uma filhinha
– Maria – de pouco mais de dois anos, estava a atrapalhar os planos, segundo eles.
Apiedada, uma senhora também cearense, viúva, resolveu ficar com a garotinha morena, cabelos rebeldes e olhos faiscantes. O lar era pobre mas, segundo o povo nordestino, onde come sete come oito e até dez. Pronto. A menina agora tinha uma nova família.
No tempo certo, a guria foi colocada na escola de primeiras letras, onde se houve muito bem, apesar das arengas quase diárias que arranjava com as demais crianças. Evoluiu a olhos vistos e logo-logo concluiu o curso primário, o ápice dos estudos naquela época e naquele lugar. Lia de carreirinha e fazia contas. Criava e dizia versos de cordel em público, e cantava feito a patativa no amanhecer do dia. Uma voz em tom alto e bem postada inebriava e encantava quando a agora mocinha imitava Elizete Cardoso e Ademilde Fonseca. Era aplaudida pela vizinhança e, em seguida, por toda a comunidade quando, no estúdio da rádio da cidade, nas noites dos sábados e domingos, sua voz ecoava pelo passeio público a partir de um alto-falante colocado no alto de uma palmeira. Realmente, ela emocionava.
Mas o sangue quente era teimoso e vencia os conselhos que lhe davam os mais velhos em casa e na escola.
Um dia, da janela de casa, ainda manhãzinha, ela desacatou, aos berros, uma vizinha que resolveu repetir música que ela acabara de cantar:
– Sua negra excomungada. Sua filha de uma puta. Aprenda a cantar sozinha e não fique me imitando. Se fizer mais uma vez, eu vou aí dar uns catiripapos em você e lhe partir a cara, sua vadia!
Ela era ignorante até as tripas e por natureza, mas o que acirrava os ânimos era que, naquela época, as divas do rádio – Inezita Barroso, Dolores Duran, dentre outras – atingiam o brilho máximo no leste do País.
E tudo ficava mais tenso quando, em seguida, vinham as campanhas eleitorais. Num desses anos, a família tornara-se aficionada por Jânio Quadros. Os partidários de Lott faziam paródias escrachando os adversários. Por seu turno, ela fazia respostas nada carinhosas. Pessoas deixavam de passar na calçada da casa, porque a Maria soltava os cachorros e ia para o tapa se alguém a encarasse. Mas todos a temiam, com a aquiescência da avó que também não dispensava uma boa confusão.
Tornou-se conhecidíssima na comunidade através da arte e da valentia.
Bem miúdo, ainda de braço, o irmãozinho mais novo era levado a passear com a Maria. Moreninho sorridente e bonito, levava as pessoas a fazerem elogios:
– Que moreninho bonito, Maria! – Ao que ela prontamente respondia:
– Beije aqui no cuzinho dele, que é pra não pegar quebranto.
A avó dava-lhe reprimenda relativa aos palavrões e ela arrematava:
– Não dou nem o cu pra cheirar que não é rosa.
Era um Deus nos acuda. Insuportável, a moça.
Noitinha do início dos anos sessenta, acercou-se da casa da avó um moço bem trajado, que veio com o fito de pedir a Maria em casamento.
Tudo foi acertado. Havia amor.
Ele era um homem que sabia muito, mas falava pouco. Nunca foi eleito deputado por ter essas duas terríveis virtudes. Tornou-se, então, um embarcadiço de alta competência. Casaram-se, enfim, e foram felizes, ou quase.
Um dia após o casamento, ele foi enviado à cidade vizinha, em busca de um carregamento de castanha, em um batelão. Viajaram por toda a noite e chegaram no Domingo cedinho. Ele se ajeitou todo e subiu o barranco para dar uma volta, enquanto a Maria aprontava uma galinha caipira no sangue como só ela sabia fazer. E deu dez da manhã e ele não voltava. E deu onze e deu doze. Lá pra uma e meia da tarde, ela resolveu subir. No primeiro boteco, já divisou o amado balançando feito cuia de cego escorado no balcão, bêbado que nem um gambá. Providência inicial foi desafivelar o cinturão do cabra. Em seguida, ele teve que descer o barranco debaixo de peia. Mas muita peia. E ele caía, e tome-lhe peia.
Passaram-se os dias e vieram dois filhos. Circunstâncias especiais promoveram uma transferência de domicílio para o Rio de Janeiro, mais especificamente, para Morro Agudo, o bairro da cerveja Brahma, onde um irmão dele, marinheiro de profissão, residia. Mudaram-se, depois, para Guadalupe, o logradouro carioca, e tiveram mais cinco filhos.
Soltar pipa era a arte do menino do meio. Uma delas veio a cair em uma propriedade murada. Ele pulou o muro e trouxe o brinquedo. De lá, da janela da casa, um homem o chamou de negrinho filho da puta. Não deu outra. A Maria ouviu e, de posse de um terçado daqueles grandes, foi para o meio do asfalto de onde desafiou a rua inteira. Ela roçava a arma no chão e as faíscas saíam em abundância. Era um Domingo de manhã. Os vizinhos se fecharam em casa e ninguém mais saiu por todo o dia.
E estes são meros esboços de apenas algumas peripécias da Maria. Há muitas outras, claro. Tratava-se de um espírito indômito e raivoso.
Tudo aqui está escrito da forma que está, tão somente porque ela é hoje falecida. Do contrário, o pau iria quebrar. Levantar-se-iam labaredas e rios de sangue haveriam de correr, porque, segundo a nossa prestigiada sertaneja, o pau que bate em Mané é o mesmo que bate em Manduca, como nos tempos do sertão.
A avó era também minha e Maria era a irmã mais velha muito amada.
Que Deus lhes outorgue o merecido descanso!
Cláudio Motta-Porfiro é escritor. Membro da Academia Acreana de Letras. Autor do romance O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, disponível no https://www.facebook.com/claudio.porfiro.