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Ternos meigos olhos repuxados

E lá estava o menino esquálido moreno calçado em arreatas de couro cru. Fazia parte da indumentária, ainda, uma espécie de gibão de estopa amarrado rente aos quadris por uma corda de algodão, e um chapéu triangular estilo Peter Pan. Ao longe, montado na última nuvem do horizonte azul clarinho, vislumbrava vales, lagos, rios, florestas e montanhas espalhados pela vastidão dos continentes. A luneta mágica, feita a partir do dente serrado de um mastodonte, fazia-o ver, ainda, a parte mais ao sul, muito além do mar depois apelidado vermelho. Lá mais adiante, ainda, divisava o grande deserto a perder de vista. Um lince e os seus olhos poderosos jamais conseguiria ver tão longe.

E já escorriam, lentamente, por entre os dedos de rabo de calango, cinco ou dez milênios. Pessoas iam e vinham. Não mais olhavam para o chão meio que, insistentemente, sempre à procura de algo. Agora, andavam com a cabeça erguida e o peito estofado com os olhos postos lá muito adiante, onde o cão perdeu as botas e farejou muita riqueza. Eram todos negros e se conduziam em bandos sempre e cada vez maiores. Uns permaneceram na terra original, a região dos etíopes. Outros empreenderam a grande travessia marítima. Encontraram, então, pessoas de tez esbranquiçada, os arianos, com quem ocorreu a miscigenação de raças de onde resultaram homens e mulheres da depois denominada cor de oliva. Surgiam aí os morenos, um dos sete povos que habitaram a terra depois da chuva mais torrencial de que se tem notícia, o dilúvio.

Não eram exatamente vagamundos, ou nômades. Os que assim desejavam comboiavam em frente. Iam-se em busca de novos horizontes. Alguns iam ficando e se situando onde melhor lhes aprouvesse. A terra mais cultivável. A água mais pura. As florestas mais densas. Os demais seguiam adiante. Agora, já estavam a ultrapassar as cordilheiras do Iêmen no rumo norte. Uma raça teimosa.

Muitos iam se estabelecendo no decorrer da grande caminhada. Já plantavam e colhiam; matavam animais de pequeno e médio porte para o suprimento proteico. Ficava difícil matar um elefante com um machado de pedra, e muito menos um bisão mais forte que a trovoada dos infernos. Desbravavam a Terra inóspita por regiões onde nenhum humano, antes, houvera pisado. A função desses nossos primeiros avós era, simplesmente, povoar os rincões do mundo por onde iam passando. Interessava, pois, fazer menino mais a torto que a direito, por cima da garranchada, ou arranhando as costas ou cotovelos das mulheres nas pedras, feito água de ladeira abaixo, ou fogo de morro acima. Esses fabricantes de crianças seguiam em frente, sempre, ou iam ficando com o intuito único de marcar território por onde o bicho homem ia passando. Era importante deixar o rasto nem que seja de maldade, porque ninguém nunca foi santo. Nem a Eva, e muito menos o desencorajado Adão.

E tudo realmente aconteceu ao longo de quarenta e tantos milênios. Era tempo demais que não podia ser jogado fora. Nada de descanso. Nenhuma trégua. Ah, os humanos. Importante era seguir e seguir sempre adiante em busca das últimas fronteiras onde elas estivessem, onde nunca estavam, posto que, só muito-muito depois foi que descobriram que o planeta é redondo feito um coité. Concluíram ainda que, por aqui, neste rés de chão da história dos primatas esclarecidos, há mais água que terra, e muito mais mesmo.

Ao longo de uns seis mil anos contados nos dedos, mais de um milhão deles agora haviam ultrapassado a cordilheira do Himalaia e o planalto tibetano. Já, então, o contato com o gelo, devagarzinho, foi fazendo com que os olhos dos morenos fossem ficando mais puxadinhos. De tanto apurarem a vista no rumo do branco das geleiras e da neve aos seus pés, apertavam as pálpebras e estas foram tomando uma forma bem mais horizontal. Eram da cor de oliva pela mistura entre arianos e negros. Os olhares ficaram oblíquos porque o brilho esbranquiçado lhes fazia doer o globo ocular. Um dia, o menino esperto moreno calçado em arreatas de couro cru houve por bem chamá-los índios. Não sei de onde ele tirou essa marmota.

E a poeira do tempo sufocava a Humanidade. Séculos sobre séculos. Milênios sobre milênios, e muitos instrumentos foram sendo inventados no período entre a pedra lascada, a pedra polida e a pedra que passou a matar os desafetos. O sangue começou a correr da ribanceira abaixo aos borbotões. Os sentidos humanos se tornaram cada vez mais densos, tensos, corrosivos, repulsivos, invejosos, escabrosos, ciumentos e com sede de poder. A paz havia ficado nos milênios anteriores. Estamos em guerra. Sempre estivemos. Estaremos amanhã, certamente.

O menino via tudo lá de cima. Um dia, então, seria a sua primeira vez. Desceria de uma das galáxias quaisquer para também gerar crianças, como faziam os outros entes do gênero masculino. E ele veio para a Terra. Pintou e bordou. Fez e aconteceu. Chutou o pau da barraca. Fornicou com todas que viu pela frente. Não deu sossego a si nem a ninguém. Durou por aqui vinte e sete longos anos. Ficou velhinho antes dos trinta. Não podia viver mais que isso, pois as condições não permitiam ir adiante. A natureza madrasta fez com ele o mesmo que fez com os outros. Como todos, nasceu sem dentes, com as unhas moles, não sabia andar e muito menos correr, nem se alimentar. Mas ficou rijo que nem um mastodonte e craque nos caminhos do sexo selvagem. Deixou mais de quarenta filhos entre as estepes caucasianas, a região do Alaska e as montanhas canadenses. E dele foi a primeira vez que se materializou enquanto humano mais carne que osso. Teve competência e se estabeleceu. Pena que rolou de uma encosta gelada, deu um contrapé nos galhos de um pinheiro, quebrou o pescoço e foi comido por um urso pardo de duas toneladas e alguma coisa a mais.

A experiência humana na Terra, em verdade, não é coisa deste mundo dos homens sãos de cabeça. É preciso ser exatamente maluco para, sem nada com o que se defender, enfrentar a natureza inóspita, os animais famintos e o bicho homem sempre de tocaia. Como deixou muito bem anotado o senhor Agostinho Silva, português, uma aventura só tem valor na medida em que é mais e mais perigosa. Se não, é melhor não sair da zona de conforto, ficar em casa e tocar a rede pra frente e pra trás a cada empurrão que o pé dá na parede.

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Claudio Motta-Porfiro é escritor. Autor do romance O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE. Membro eleito da Academia Acreana de Letras.

Fabiano Azevedo: