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SEPARADOS PELA HANSENÍASE: Histórias e relatos de quem tem a Casa Souza Araújo como último refúgio

Quem visita a Casa de Acolhida Souza Araújo ouve muitos relatos sobre a hanseníase no Acre. Mas, um deles chama a atenção. Adalcimar Pereira de Souza, hoje com 50 anos de idade, 27 anos deles vividos aos arredores da Souza Araújo, conta que era uma criança saudável que junto com outros 15 irmãos se banhavam nas águas turvas do Rio Purus. Mas, o avanço da doença e o preconceito fizeram com que o pai de Adalcimar decidisse deixar o seringal e se mudar para a periferia de Rio Branco.

A doença atingiu cinco irmãos de Adalcimar. Todos hoje têm sequelas da hanseníase. Em um relato triste e emocionado, ele conta À GAZETA como foi deixar Sena Madureira e chegar à cidade de Rio Branco. Sem dinheiro, sem patrão novo, sem perspectivas de cura, o pai foi se abrigar com os 15 filhos em um batelão às margens do Rio Acre, na região do Preventório.

“Eu morava no Purus. Nós viemos de lá naquela época. Meu pai abandonou o seringal. Nós éramos 15 irmãos, cinco contraiu a doença e tivemos que sair de lá. Era muito preconceito e nós tivemos que sair de lá. Meu pai tinha uma lanchazinha e trouxe nós arrastado. Nesse tempo, para separar da família, eles vinham numa embarcação maior e nós numa canoa para chegar aqui. O preconceito era muito grande. Para a gente comer estendia-se um remo muito longo para chegar comida até a canoa. Já pensou a gente vindo de lá para cá num barco e até com a família a gente não podia chegar perto devido a doença ser muito forte?”, lembra emocionado e com a voz cheia de dor.

Ele conta que com o tempo, o pai conseguiu adquirir um terreno na região do bairro Cidade Nova. Mesmo com a construção da nova moradia, os cinco filhos ficaram em uma outra ‘casinha’ no fundo do quintal. O isolamento era a ordem naquela época.

“Depois nos mudamos para a Cidade Nova onde o meu pai fez uma casa e construiu uma casinha atrás. Nós morava numa casa separada da nossa família. Muito sofrimento. Os irmãos todos sequelados e eu nessa época era um menino perfeito, mas devido naquele tempo não ter o tratamento adequado, quando fui me tratar eu tinha 17 anos de idade, então, foi uma época de muito sofrimento e sequelou. Os nervos ficam fracos e recolhem todos”, conta ele que hoje mora na Vila Alberti Sampaio, próximo à Casa Souza Araújo.

Além de Adalcimar Pereira, a Souza Araújo tem outros pacientes que escolheram o lugar não apenas para tratamento, mas para morar. Na chegada da equipe de A GAZETA, foram encontrados três senhores jogando cartas e com os semblantes alegres. Um momento de fuga de uma realidade que se aproxima: o possível fechamento da unidade. Desde agosto sem repasses do governo estadual, o local tornou-se uma incerteza.

Uma pausa no jogo de cartas e o relato do senhor Raimundo Batista, 84 anos, comove tanto quanto o primeiro. Após o falecimento da esposa, Raimundo decidiu voltar a morar na Souza Araújo, local conhecido dele desde 1968 quando contraiu a doença e ficou até 1980. Depois, com uma ordem de alta coletiva, seu Raimundo foi ajudar o irmão na abertura de uma ‘colônia’ na Vila Pia, região de Porto Acre. Hoje, cadeirante, ele teme o fechamento da unidade.

“Aqui era chamado naquela época de ‘leprosal’, quem vinha pra cá não saia mais. Cheguei com 37 anos, tomei o remédio e recuperei e fiquei aqui 12 anos trabalhando. Quando saí, meu irmão foi abrir uma colônia na Vila Pia. O Incra estava cortado, muitos que estavam aqui foram. Mas, meu irmão contraiu uma hepatite numa transfusão de sangue. Naquele tempo tirava o sangue de um e botava no outro e ele veio a falecer. E eu não fui mais pra Vila Pia. Ainda cheguei a abrir lá, mas voltei para uma chácara que eu tenho aqui perto. Formei família, tenho dois filhos, um mora em Porto Velho”, diz o pai saudoso ao lembrar da família e sem demonstrar mágoas.

Adalcimar Pereira de Souza, hoje com 50 anos de idade
Raimundo Batista, 84 anos

 

Colônia Souza Araújo: de Hugo Carneiro a Jorge Kalume

A Colônia Souza, ou Hospital Souza Araújo foi criado em 1928. O governador do Acre naquela época era Hugo Carneiro. Um total de 30 pacientes vivia no local, isolados de Rio Branco. Um comboieiro era o responsável por levar mantimentos à colônia. Em completo isolamento. Para se ter uma ideia disso, a visita médica era feita uma vez ao ano.

Só em 1947, com a ida do governador José Guiomard dos Santos, foi que a assistência médica passou por melhorias. Uma vez por semana, um profissional médico passou atender os pacientes.

De acordo com o relato da Diocese de Rio Branco, foi só em 1966 que o governador do Acre, Jorge Kalume, encaminhou ofício à Prelazia do Acre e Purus, que tinha como bispo Dom Giocondo Maria Grotti. O bispo dos pobres, como era conhecido, assinou um contrato com o Governo do Estado estabelecendo que “a manutenção continuaria sendo responsabilidade do Governo do Estado, o que consistiria em remédios, alimentação, salários e até conservação dos prédios. O valor repassado seria através de subvenções sociais, reajustado de acordo com a moeda do momento, através de projetos anuais apresentados pela Prelazia”.

Para entendermos melhor a dimensão da hanseníase no Acre, em 1966 mais de 400 pacientes foram atendidos na unidade. Com a assinatura do contrato com o Estado, a Souza Araújo ganhou fôlego e vários pavilhões foram construídos, também com doações de instituições italianas que viram na obra social desempenhada por Grotti uma oportunidade de ajudar o próximo e minimizar a dor de pessoas que escolheram a selva amazônica como lugar para morar, mas que foram expulsos de suas áreas devido ao preconceito e o desconhecimento da doença.

A Casa de Acolhida Souza Araújo hoje

Francisca Vieira de Lima

Atualmente conduzida com mão de ferro pela irmã Francisca Vieira de Lima, da Ordem das Irmãs Josefinas, ela conta que tem feito o possível, juntamente com o bispo Dom Joaquim Pertiñez, para manter as obras sociais e os serviços funcionando adequadamente. Mais de 40 colaboradores prestam serviços na entidade filantrópica. Além de médico, enfermeiros, técnicos de enfermagem, também tem a parte agrícola da Casa.

Funcionando como uma colônia agrícola, a Souza Araújo conta com criações de suínos, gado leiteiro e peixes. Tudo para o consumo dos internos. Para manter toda a estrutura do complexo é necessário recursos.

Nesse sentido, a diretora-geral, Francisca Vieira, faz um apelo ao governador Gladson Cameli (PP) para que a obra social não feche as portas. “A casa está funcionando porque o bispo está mantendo os gastos. Ele veio aqui e disse que tem dívidas com os fornecedores, só ainda não cortaram o fornecimento de alimentos e materiais de limpeza porque confia, sabe que a Diocese não vai dar calote. Mas, ele disse que tem dívidas e está com 8 meses sem repasse. Se não houver uma negociação com o governo para que seja firmado um convênio, eu acredito que possa fechar. Ultimamente foi cortada a gasolina para levar e trazer os pacientes”, diz Vieira.

Problemática chegou à Assembleia Legislativa e ao Senado

O deputado Jenilson Leite (PCdoB) esteve visitando a Casa de Acolhida Souza Araújo. No encontro ele garantiu que fará uma Indicação Parlamentar a ser enviada ao Governo do Estado solicitando os repasses em atraso e a manutenção do contrato entre a Diocese de Rio Branco e o Estado para continuidade da parceria.

“Estamos tomando conhecimento da não renovação do convênio que ajuda aqui a Souza Araújo. O Governo do Estado sempre teve essa contrapartida solidária aqui para ajudar. Vamos fazer uma indicação para que o governo renove esse convênio para que assim possa de maneira, humanitária, prestar a essas pessoas que estão no fim de suas vidas e que vivem aqui nessa condição atualmente difícil”, completa o deputado do PCdoB.

No começo da última semana, o senador Sérgio Petecão (PSD/AC) também comentou a respeito do assunto. Petecão pediu um olhar especial por parte de Gladson Cameli (PP) para os internos da Casa de Acolhida Souza Araújo.

“É com muita tristeza que estou acompanhando a situação do hospital Souza Araújo, sei que o nosso estado passa por um momento muito difícil, principalmente na área da saúde. Faço um apelo ao nosso governador que dê uma atenção especial, pois a Souza Araújo precisa ser olhada com um olhar diferenciado”, disse o senador Sérgio Petecão, aliado de Cameli.

O governo

Na última quinta-feira, 14, o então porta-voz do governo, Rogério Wenceslau, disse que uma reunião iria acontecer entre a equipe de governo e representantes da Diocese de Rio Branco, mas a reunião foi adiada sem data para novo encontro.

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