Ouvir a conversa dos outros é feio? É. É irresistível? Também. Eu faço? Desde pequenininha. Amo e desenvolvi técnicas eficientes de disfarce para que os falantes não se incomodem com a minha escuta curiosa. Os restaurantes são meu terreno favorito para a prática, mas museus, rua aberta, cafés, livrarias, salas de espera e pracinhas também funcionam perfeitamente. Foi nesta última que ouvi o diálogo que reproduzo aqui.
Eram duas mães desfilando elogios a uma criança que, aparentemente, era muito diferente das suas,que tomavam o sol ali no carrinho.
- Queria que a Malu fosse como a Cacá, ela é muito boazinha, dorme a noite inteira. Quase não chora.
- Tão mansa. Sábado, ficou quietinha olhando o Leo pegar os brinquedos dela. Era meio dia e a menina não reclamava de fome, nem de calor, uma graça.
Eu não vi graça. Senti por Cacá. Desde quando não chorar, se deixar invadir, calar diante da fome e do calor é invejável? Desde quando ser mansa é um elogio. Mansa? Senti pelas mães, querendo um outro filho, incapazes de olhar para os seus bebês, de escutar seus barulhinhos reclamando o direito sair dos carrinhos e aproveitar a praça. Senti por Malu e por Leo que dali do carrinho ouviam os shhhhs das mães que ao terem a conversa interrompida balançavam as crianças em um tipo de consolo desagradável e sem sentido. Que dali ouviam as mães desejarem que fossem outro. Senti por mim que,atenta à conversa e desatenta ao exercício da empatia,fui inábil no meu mantra de observar sem julgar. Quem sabe se não estavam jogando conversa fora, quem sabe se não criticavam veladamente a postura da menininha…
De qualquer modo, conheço meu incômodo. Cresci em uma família que tinha também um mantra para chamar de seu. Mães, tias e avós repetiram durante grande parte de minha infância que “A ovelha mansa mama na sua e na alheia. E a brava nem na sua nem na alheia”. Era um chamado para a menina boazinha e mansa que fui durante muitos anos. Que tentamos ser, nós mulheres, durante muitos anos. Um seta iluminada e piscante dando ordens de para onde, como e quando se deve ir. Pois quebrei cada uma das luzes desta danada com alguma dificuldade, mas com muito gosto. Seta no lixo. Em minha casa, para minhas filhas, essa frase nunca foi repetida. Boazinha, mansa e calada não. Que chorem, reclamem e peguem seus brinquedos de volta. E que façamos também o mesmo. Boa semana queridos.
Roberta D’Albuquerque