Em dias de solidão da alma, mórbida calma, tristeza infinda, chuva fina duradoura cai do céu sem piedade alguma, desde muitos dias. Tão bela e uma vontade louca de arrancar os próprios louros densos cabelos e enforcar-se neles, como fez a doida do hospício de Lisboa. Desejo enorme de empanturrar-se, afogar-se em mágoas, beber toda a lagoa e morrer nas águas desta a mirar a metafórica beleza, como fez o Narciso completamente maluco, mas metido a bonito só para ele mesmo.
Moça bela, rica e prendada que era, partira em viagem a uma terra longínqua perdida lá pelos fundos do Nepal. Estava em busca de consolo, em vista de um louco amor perdido. Um guru não-sei-das-quantas seria a sua pedra angular e o seu arrimo sentimental.
Braços dados, agora, passeavam – ela e o monge – sob um guarda-chuva, em um grande bosque de cinamomos. Aos pés do guru com jeitão de pai de santo, ela derramava todas as lágrimas do mundo em confidências amargas acerca, principalmente, do seu único e verdadeiro afeto, aqui denominado dissimulador, ou a última praga do Egito, conforme ela própria.
O homem não valia o enterro do gato. Além de mentiroso e embusteiro, era fujão e estelionatário das finanças da diva que estava classificada, já, entre as do gênero, espécie ou grupo das balzaquianas vestidas prêt-à-porter. Certo é que ela já não estava no topo da cadeia alimentar citadina. Dela alguns diriam uma orquídea urbana residente em New York City. E é assim mesmo que a banda toca.
A musa, verdadeiramente, caíra num poço de sofrimento. Ainda chorava, e muito. O frio não lhe congelara as lágrimas. O seu muro das lamentações eram os picos nevados do Himalaia. A torrente de lamúrias talvez inundasse todo o Sul da China e adjacências. Dois dias depois de penitências e abstinências gerais, sentada num tatame em posição de lótus, dentro de um quarto, nua em pelo, como se estivesse auto sodomizando o próprio espírito choroso, enfim, o homem desceu de um monastério trepado na montanha, todo ancho nos seus olhinhos puxados vizinhos de uma floresta de rugas, para lhe dizer algumas coisas muito óbvias, como:
– No amor, as coisas são assim mesmo e quem não pode com o pote não pega na rodilha. E desembuche logo, porque eu não sou um desses psicólogos ocidentais que ganha dinheiro a rodo e diz curar dor de corno de madame metida a gostosa, mas carregada de chifre até as tripas. Ora, merda!
Deixe que ela, apesar de se sentir protegida e reconfortada com o cheiro de canela fresca no ar, e com a companhia daquele maluco metido a santo, não entendia porra nenhuma. O monge falava a língua nepalesa… E o cinamomo é a árvore de cujas folhas se fabrica aquele pó moreno que empresta gosto à canjica.
Enquanto isso, o homem caminhava de queixo e nariz empinados, arrebitados mesmo, mas olhando por baixo e perscrutando tudo ao redor, inclusive, o par de rabo vistoso e os peitos volumosos da bela. O décimo oitavo sentido dele entendia tudo, inclusive, as vírgulas e reticências entre os soluços dela. Afinal, era ele um guru dos bons, ora pois.
O tal monge já estava de saco cheio até a borda com tanto queixume. Mas a cantilena chorosa só agora tomava algum sentido:
– Olhe, seu guru! Eu vivo um relacionamento dolorido que está me maltratando muito e a coisa é tão pegajosa que não tenho conseguido encontrar, ou até mesmo buscar uma única saída. Já nem me alimento e a minha vida é uma tristeza só. Estou assim meio que perdida no mato, mas arrodeada de matilhas de cachorros de todas as raças, que olham para mim como a me querer devorar o rabo de sereia com os olhos e as línguas aqui denominadas idiomas. Sei que vossa santidade está a me compreender.
Um suspiro aliviado, porque as reticências davam a entender que logo a conversa teria um fim, antes de o mundo se acabar. Com um gesto entediado ele a fez prosseguir:
– Pois bem. Gosto muito dele e estou me sentindo, desde a década anterior, a piranha do filme Num lago dourado.
Então, o monge soltou um oh!
– Ele é casado, ou era. Nem sei direito. Daí, um dia, fugiu da esposa, mas já com saudade dos pimpolhos amados cujos pais ninguém sabe quem são. E agora ele está de volta para a dita cuja.
– Oh!
– Quero-o para sempre ao meu lado, ou por cima, ou por baixo, seja na posição que for, seu guru. Não posso acabar o nosso idílio estilo cama, mesa e banho, e nem a nossa pegação, de forma alguma. Jamais. Ele é o cara, mas está sumindo das minhas vistas. Está em fuga desde ano passado. Como faço para tê-lo de volta?
Apesar de demonstrar nada entender do inglês falado pela valquíria do rabo de fogo, ele balançava a cabeça e as mãos, hora na horizontal, hora na vertical, como a ponderar sobre os fatos.
– Ele afirma, peremptoriamente, que me ama, mas não consegue ficar longe de um par de bastardinhos que nem são dele. Isso eu nunca vou entender.
A chuva dera uma trégua. Raio de sol a pino conseguiu desvirginar nuvem mais moça. Pararam um pouco e se acomodaram a um banquinho rústico debaixo de um cinamomo.
– Estou como no filme Sem saída. Não sei o que fazer para acabar com tanto sofrimento. Até amantes já arranjei. Uns quinze. E nada ou ninguém me tira o pilantra do pensamento. Já não aguento mais. Amigas com quem me encontro em um bistrô da 28th Avenue falam que ele faz tudo isso porque sabe que estou com os quatro pneus e o estepe arreados pela pessoa dele. Elas dizem ainda que eu devo dar-lhe o desprezo, mas não consigo. Como farei para esquecer? Que porra é essa, seu guru? Minha vida parou desde o momento em que o conheci.
O velho monge bateu palmas três vezes. Um garoto bacaninha, sorridente, e de olhos também puxadinhos, trouxe-lhes um chá, talvez, de cala-a-boca, quente, fumegante. Um lenitivo para o suplício vivido pelo velhinho naquele momento ímpar da vida centenária em que estava a tomar conta dos segredos de uma diva pululante de alcova em alcova.
– Bem. Parece que ele joga carteado em uma taverna de Hong Kong. Mulher e filhos estão lá. Deve ganhar um bom dinheiro, enquanto não lhe mandam para o quinto dos infernos, em vista da sua nobre arte da mutreta com as cartas na mão. Daí, ele me pediu para vir para a Ásia. Quer ficar comigo, mas também quer ficar ao lado da família. Deseja-me como amante e não quer abrir mão de mim, mas também não quer largar os cabritinhos.
Depois de todo esse desplante em meio a lágrimas de crocodilo, ela foi curta e grossa ao arrematar:
– De uma vez por todas, seu monge. Eu quero ser única na vida de um homem. Jamais aceitaria ser a outra.
Uma galerinha já se formara ao redor da dupla. Todos eram conhecedores das peraltices do monge. Daí, para o espanto dela, depois de três horas infindas, ele deu-lhe um prolongado cheiro no pescoço e se expressou em um inglês límpido e cristalino:
– Lembrando o senhor Eliot, devemos acreditar que aquilo a que chamamos o nosso desespero é, frequentemente, a dolorosa avidez de uma esperança insatisfeita.
O guru era um sábio. Ele era bom no geral. Daí, fecharam-se as cortinas e a trepadeira se enroscou nas pernas do velho mais rijo que os cinamomos produtores da canela em pó. Coisas da natureza.
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CLÁUDIO MOTTA-PORFIRO*
*Escritor. Membro da Academia Acreana de Letras, Cadeira 27. Autor de O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, romance, disponível pelo https://www.facebook.com/claudio.porfiro > ou pelo 68.999179880 (também WhatsApp)