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Os monólogos bizarros do Senhor Candongas

Viajei por aí durante algumas semanas e, na chegada, fui ter com os melhores amigos do mundo, no boteco tão amado e fofo. A dor do parto, na superior maioria dos casos, é equivalente à alegria do regresso. Entre muitos rapapés, saravás e brindes diversos, a lambança correu solta perfazendo uma jornada total de quase oito horas, como se fossem dois turnos de trabalho exaustivo. À saúde!

Lá estavam o procurador chefe, o assessor jurídico, o clínico geral de não sei quantas especialidades, o engenheiro que dá luz, o poeta sem berço, o juiz cansado, o político falido, o desenhista sem arrimo, o camelô paraguaio, o escravo do jornal, o advogado falastrão, dois jogadores de sinuca no desassossego e, lá no fundo, a nata da rapiocagem fazendo uma batucada morna, mas de extremo bom gosto.

Eis, pois, que assomou à porta uma das reservas morais e indeléveis desta terra de muro baixo, como bem dizia o Barão de Itararé. Negrão alto, forte, espadaúdo, vestia a camisa da Beija Flor de Nilópolis. Cara de enjoado, atitudes meio bruscas, mas um amor de crioulo. Um bacana.

De longe, ele gritou, naquele vozeirão, apontando para mim:

– Dê cá um abraço, meu camarada, gente da melhor espécie. Como você está? Por quais praias esses pés lindos andaram? Quantos tonéis de chope você entornou?

Depois das mesuras e dos tapas nas costas que quase me estouram os bofes, ele olhou para a galera que observava o estardalhaço e a chegada triunfal, levantou as mãos fazendo o vê da vitória, e sapecou um grito:

– Eu gosto é de mulher!

Cabra bom esse Zezinho das Candongas. Ele estava com a garganta azeitada e, dali em diante, quase ninguém mais falou. A conversa estava sob o amplo domínio dele.

Depois de expor os seus pontos de vista, um pouco, acerca do futebol estadual, ele emendou no rumo do samba e passou a fazer digressões sobre as beldades que sairão como destaques no Carnaval deste ano.

– Meu Deus, meu compadre, as mulheres têm esse dom divino de deixar tudo bem mais iluminado. Daí eu consigo andar sem topar em nada e muito menos nas agruras da vida.

E fez emenda falando alto pra polícia perceber mesmo:

– Lá na residência, tenho deixado muito claro para a minha loura que nunca mais lavarei louça alguma, posto que, uma vez, num Domingo, fiz o serviço e ela o refez, quando pensou que eu havia pegado no sono. Percebi que a musa não gosta das minhas mãos pretas lavando a porcelana branquinha. A parte negra que ela mais gosta em mim é outra, e essa eu não digo.

No calçadão, pois, passava estonteante mulata descendo a Babilônia, o morro. O Senhor Candongas praticamente enfiou os olhos medonhos entre os seios da beldade. Em seguida, mirou a bunda miraculosa. Depois que ela virou a esquina, ele distorceu o pescoço e vaticinou:

– Peitos foram feitos para serem olhados e é isso que nós iremos fazer até o dia do juízo final. Democracia podre nenhuma vai mudar esse estado de coisas.

Entre um gole de chope e um arroto comedido, ele continuou a cantilena, agora, puxando a sardinha pro lado dos homens. O questionamento percebido por poucos era, pois, a famigerada tampa do vaso. Em casa, ele houvera dito há pouco:

– Bete, minha loura linda, você é uma menina crescida. Se a tampa está levantada, abaixe-a. Você precisa dela abaixada. Eu preciso que a cuja fique levantada. Você não me vê reclamando por que você a deixou abaixada. E olhe que eu conto com um metro e oitenta e seis de estatura e ainda disponho de uma longa coluna cervical que já enverga à duras penas.

Daí, chegou a Bete, uma beldade de lábios carnudos adornada por um par de rabo monumental. O discurso peremptório continuou. Ao contrário do que eu pensei, ela não o fez calar-se, mas fitava, embevecida e orgulhosa, os olhos e a boca do seu petroleiro.

– Coloca um chope para a musa dos meus versos. Minha ninfa merece brincar neste parque de diversões. – Disse ele apontando para si próprio. – Ela, por exemplo, sabe que o Domingo é o dia dos esportes. É a mesma relação que a lua cheia tem com as mudanças da maré. Deixe estar, ou me acompanhe.

A Bete está numa categoria de mulher que fica entre a subserviente, a mandona e a pacífica, e disse já entender muito bem quando O Zezinho fala que comprar não é um esporte. É necessidade. Mas ela dirige um carrão japonês do ano e anda vestida como uma rainha de bateria. Belíssima.

Também ela concorda, como sempre, quando o seu negrão apregoa, que choro de mulher é pura chantagem. Admite ainda que as belas devem dizer logo o que querem, sem rodeios, uma vez que, segundo o seu engenheiro Candongas, é preciso clareza. De nada adiantam as dicas sutis, nem as claras e muito menos as óbvias. Torna-se imprescindível ir direto ao fator. Quero isso, ou quero aquilo, uma vez que é sabido e garantido que sim e não são respostas perfeitas para praticamente todas as questões existentes nesta vida.

– Ora mais que essa! A Bete é uma psicóloga inteligente. Desde guria, com o pai, também funcionário da petroleira, aprendeu que é aconselhável falar com um interlocutor qualquer a respeito de um problema somente se ele quiser ajuda para resolvê-lo, ou se ela quiser ajudar a encontrar a solução. Isso é o que os homens fazem.

Foi quando ele pendeu para o setor cáustico da vida alheia, no que foi admoestado pela Bete, que franziu o cenho em tom de desaprovação. O Zezinho não ligou por haver sido chamado à atenção e seguiu em frente com a sua metralhadora giratória:

– O Amaral, aquele gordinho do exército, que mora na rua Anchieta, aqui mesmo no Leme, tornou-se extremamente preocupado com os azedumes da esposa, uma mulher que está mais na Missa que em casa. A Alzira vive de aspirinas. Toma mais comprimidos que come feijão. O mal humor a faz esbravejar, apesar da relativa prosperidade do casal cujos filhos estudam em São Paulo. Ele veio me falar de uma tal cefaleia crônica que perturba a esposa há um tempão. Daí eu tive que dizer que uma dor de cabeça que dura dezessete meses é um problema de saúde talvez grave. Se ela ainda não procurou um médico, é porque está gostando da doença, ou não está gostando mais dele…. Não estou certo, meu camarada?

À noitinha, nós nos cumprimentamos e cada qual tomou o rumo de casa. Ali estávamos desde o meio-dia. O cansaço já se abatera sobre a maioria dos convivas. Tomamos a saideira. Era a hora quase exata de zarpar.

Mais tarde, em casa, comecei a pensar em um negrão genial feito nós todos da cor: o Mandela dizia gostar de amigos com mentes independentes, pois estes tendem a fazer com que nós vejamos as questões a partir de todos os ângulos.

Assim é o Zezinho das Candongas. Bebe água de chocalho. Fala mais que a preta do leite. É mesmo do brado retumbante. Ele mal nos deixa colocar os problemas e já vem trazendo as soluções, em bandeja limpa e guardanapo passado.

Ele é bom.

 

CLÁUDIO MOTTA-PORFIRO*

*Escritor. Autor do romance O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, disponível (in box) no https://www.facebook.com/claudio.porfiro

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