Estas mal traçadas linhas constituem uma crônica melíflua demais e, por assim dizer, poderia ser chamada trezentos dias sem ela. Talvez até venha a se transformar em roteiro de filme estilo água com açúcar. Nunca se sabe quantos repiquetes ainda passarão por debaixo da ponte, afinal, hoje, o inverno já faz parte do passado. Senão vejamos.
Depois de uma breve visita à Escócia, onde ainda hoje reside a filha única, professora de teoria geral da arte, na Universidade Caledônia de Glasgow, Sir Leonard Atkinsons, aposentado como pesquisador paleontólogo emérito em Leeds, resolveu fazer uma viagem de seis meses a New York, onde talvez encontrasse um novo amor, dado que a esposa o largara sem delongas, por uma novinha, assim como quem deixa um pano de sabão debaixo de uma cuia na beira do rio. Oh, céus.
Do Aeroporto John F. Kennedy, onde encontrou à sua espera um velho amigo, Gary Fisher, dos tempos da graduação em Cambridge, pegou o trem metropolitano para Manhattan. Desembarcaram numa das avenidas paralelas ao Central Park e, depois de uma boa caminhada, comeram à tripa forra no tradicionalíssimo L. S. Kitchen. O amigo tomou o rumo de uma livraria próxima e o nosso herói pouco precavido buscou hospedar-se no Hotel Pennsylvania.
Era sábado e, à tardinha, então, Leonard resolveu aventurar-se, a pé, ali pelas adjacências, uma vez que o clima de verão se fazia bem ameno. Em dez minutos de passeio e já adentrou o Old Town Bar, na 45 Leste, esquina com a 18ª Avenida. Nenhum pub inglês era tão encantador, pelo menos aos olhos do nosso herói desavisado.
As vistas sequiosas de raposa, imediatamente, vislumbraram figura feminina de protuberâncias e reentrâncias dignas de um escultor inglês clássico. Ela bebia um ginger-ale em cálice segurado apenas pelo indicador, o polegar e o mínimo. Os demais dedos sobravam solertemente levantados para fazer fita. Um batom carmim e roupas leves davam a ela um charme estilo Tinsley Mortimer, a super socialite. Pior: ela grudou os olhos no nosso herói e este lambeu os beiços, descuidadamente. Não havia maldade mesmo. Era um homem de seis décadas educado nos mais refinados círculos de Londres. A lascívia mesmo partiu da Sally, uma ninfeta linda como o pôr do sol no Alasca.
Não tardou e, depois do primeiro uísque, ele enviou para ela, por intermédio do garçom, algumas palavras um tanto toscas acompanhadas de um verso de Byron: Quanto mais conheço os homens, mais quero bem ao meu cachorro. O nosso herói enjambrado já estava doidão, mas ela entendeu como apenas um chiste e soltou um sorriso de levantar labaredas. Pernas bambas, ele de pronto se levantou e foi ter com a musa cintilante que o ofuscava em vista de tanta beleza.
Ela, agora, já não bebia refrigerante. Estava entornando talvez a terceira dose de Jack Daniels, o uísque com gosto de mel de marimbondo. A conversa girava em torno das pesquisas dele nas terras altas da Escócia. Ela falava sobre a sua recente participação enquanto modelo numa campanha da Sunshine Yellow, de lingeries. Foi um sucesso. Não podia ser diferente, em vista do seu rosto de anjo, pose de ninfa e um par de rabo descomunal. Faria outros trabalhos certamente. Uma agência já até a convidara, e ela estava eufórica. Mas não podia esquecer o curso de medicina que iniciara há pouco numa faculdade instalada ali próximo, a Gallatin New York University, onde estava a conduzir-se muito bem.
Sally continuou a falar de si e das suas qualidades. Disse que tinha vinte e um anos, enquanto o interlocutor já brandia as sessenta e duas voltas, mas se dera muito bem na vida, como pesquisador, num país em que a ciência é levada muito a sério, daí o estágio de desenvolvimento alcançado pelo Reino Unido.
Mais tarde, já além da meia-noite, de braços dados, resolveram caminhar pela 18ª Avenida, onde os transeuntes iam e vinham em grande número. Era alto verão. Ela foi incisiva e didática:
– Vejo que você anda em busca de um novo amor. Algo me diz que não está aqui pela ciência, mas pelo que lhe fala o coração. Não é isto?
– Pensando bem, acho que sim. Nada em específico me traria a New York. Mas agora, analisando o rebolar da carruagem, posso dizer que o meu coração aprovaria um novo relacionamento, com certeza.
– Veja como são as coisas. Venho de um relacionamento pueril com um moço de quarenta, mas, como dizem os analistas, os homens só deixam de ser crianças já na casa dos cinquenta e tantos. Em assim sendo, eu houve por bem pular fora daquele barquinho chulo que entrava água por todas as frestas e aos borbotões. E aqui estou de olho num coroa enxuto que já se tornou homem crescido aos sessenta e dois. Graças.
– Assim o dizes e assim tentarei ser. As suas expectativas não serão frustradas, se ou quando for o caso, seja ao lado de quem for.
– Sempre tive uma grande queda pelos homens maduros e acho que já caí de quatro pela sua pessoa, meu querido Leo.
Seguiram sob as alamedas que enfeitam a Avenida Lexington, onde ela residia em apartamento minúsculo. O convite para mais um drinque foi aceito e a noite se estendeu sob os eflúvios do uísque e do amor sem roupa. Uma beleza.
E a história correu de vento em popa, pelo menos por uma semana. A energia do nosso herói não se esvaía, porque uma vitamina de guaraná em pó, cerveja preta, farinha láctea, abacate e ovos de codorna, dentre outros, deixava-o em êxtase quase permanente; ademais, a beleza e o cheiro inebriante da musa faziam a sua parte.
Mas veio o infausto. Um telefonema no meio da oitava noite dava conta da internação de Mildred, a filha professora, muito doente, em Glasgow. Ele teria que se afastar da bela, para dar atenção ao netinho, ou enquanto durasse a internação. Um planejamento detalhado da vida a dois já houvera sido feito, mas as contingências humanas houveram por bem separar o casal de pombos arrulhantes. Uma peninha.
As mensagens de WhatsApp iam e vinham através do Oceano. Também os telefonemas. Os contatos eram feitos dez ou mais vezes por dia. A distância dera um novo fulgor à paixão. Lágrimas escorriam de leste a oeste, e vice-versa, a se misturar com as águas do Atlântico. Santa loucura.
Mas trezentos dias se passaram e, na Escócia, o internamento de Mildred prosseguia. A doença agora arrefecia aos poucos e os cuidados do pai eram ininterruptos. A distância a cada dia mais maltratava os apaixonados. Ela não podia viajar em vista das obrigações, principalmente, relativas à medicina. Ele também não.
Foi aí que entrou no meio daquela confusão de sentimentos enfermeira chamada Allison, uma bela morena clara de olhos amendoados e cabelos da cor da asa da graúna. As mesmas palavras foram ditas ao distinto e cobiçado cavalheiro. A escocesa confessou também haver-se apaixonado pelo pesquisador gostosão. Pense numa delícia, ela.
Leonard Atkinsons, pois, foi obrigado a pôr a bom termo o relacionamento nova-iorquino enviando uma mensagem à bela onde se lia:
Querida Sally. Tenho um novo amor, aqui na Escócia. Ela é de Edimburgo e conta com vinte e oito primaveras. Há um mês, pediu transferência para Glasgow, alugou um apartamento e me chamou para ir morar com ela. Estou indo. Agradeço pela sua sinceridade em nunca me haver declarado amor. Não mentiu. Você é uma alma boa. Peço desculpas por tudo. Sucesso. Adeus.
E agora, segue o cortejo ao longe, serpenteando, colina acima e abaixo. É o enterro da última quimera. E vai lá o poeta puxado pelas mãos lânguidas e firmes do destino. Pensa ele que morrer sem se ter apaixonado pelo menos mil vezes, ou mais, é como sequer haver nascido.
Assim a vida é.
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CLÁUDIO MOTTA-PORFIRO*
*Escritor. Membro da Academia Acreana de Letras, Cadeira 27. Autor de O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, romance, à venda pelohttps://www.facebook.com/claudio.porfiro