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A nefasta banalidade do mal

Nos últimos tempos venho pensando cada vez mais sobre a banalidade do mal. Num mundo real onde impera cada vez mais o mundo virtual, em que pessoas são amigas virtuais, namoram virtualmente, trabalham pela rede mundial de computadores, são ricas não mais porque possuem propriedades imóveis, mas porque possuem bens imateriais, é inevitável que pessoas se odeiem virtualmente? É inevitável que façamos o mal pelo meio virtual? Esse mal decorre de motivos reais ou virtuais apenas?

Certamente, quando uma de minhas filósofas preferidas desenvolveu suas ideias acerca da banalidade do mal, ela nem de longe imaginaria o quanto o mal seriaainda banalizado por meio da internet, o quanto o mal estaria vivo muito além das estruturas do Estado.

Quando Hannah Arendt encarou o julgamento de Adolf Eichmann, ele tinha sido sequestrado num subúrbio de Buenos Aires por um comando israelense, em 1960, e levado para Jerusalém, para ser julgado naquele que se dizia ser o maior julgamento de um nazista fora do tribunal de Nuremberg.

No entanto, iniciado o processo, sob o olhar atento de Hannah Arendt, ao invés de ali ser retratado um verdadeiro monstro, Eichmann surgiu aos olhos de todos apenas como um burocrata medíocre, sem capacidade de refletir sobre seus próprios atos.

A partir desse momento, Hannah Arendt, judia, sabendo de todas as atrocidades provocadas pelo Nazismo, atrocidades essas que, aliás, fizeram nascer uma nova experiência de Estado no pós-guerra, o Estado Democrático de Direito, e que, para nós do Direito, fez mudar a teoria e a hermenêutica jurídica, desenvolveu suas reflexões acerca da banalidade do mal, que, para a filósofa, seria uma imensa ameaça às sociedades democráticas.

Uma das principais reflexões de Hannah Arendt, que escreveu o livro “Eichmann em Jerusalém”, e que por seus pensamentos foi muito criticada por seus pares intelectuais, diz respeito ao poder que o Estado tem de transformar o exercício da violência que mata em simples cumprimento de metas, ou seja, como é possível burocratizar e tornar banal a violência assassina por parte do Estado.

Em tempos de extremos, a banalidade do mal cada vez mais incomoda-me, especialmente, porque, num ambiente em que há dois extremos em conflito, a razão geralmente tende a sair de férias, não sem antes fazer-se acompanhar da linguagem. E, razão e linguagem de férias, vale praticamente tudo no campo de batalha, vale, inclusive, o mal desmedido e injustificado.

E o mal hoje, mais do que nunca, não me parece algo alheio a mim e a vocês que me leem.

Quem de nós não foi vítima do mal praticado por quem nos abraça e diz que estamos em suas orações?

O mal está entre nós e em nós como o bem também está.

Há, hoje, para mim dois problemas graves no mal na pós-modernidade: o mal transformado em política de Estado, em política de governo ou em lei (os brasileiros sabem bem que tem feito o seu Poder Legislativo), e o mal que me atinge pessoalmente, algumas vezes tocando meus direitos da personalidade, como a privacidade – e que deve atingir muitos que me leem agora – na forma de injustiças incontornáveis.

Nem todos as consequências do mal podem ser reparadas. E isso é sempre impactante para mim.

O mal, disse Hannah Arendt, é uma prática promissora nas sociedades de massa, e vejam que Hannah nasceu em 1906 e morreu em 1975, portanto, a filósofa não conviveu com a globalização e com o mundo que adiante (re)nasceria a partir da rede mundial de computadores.

Hannah Arendt indagava-se sobre o que fazia com oque um ser humano comum praticasse crimes bárbaros como se nada demais estivesse fazendo.

Eu pergunto-me acerca do que faz com que um ser humano injustificadamente cause dor no outro, em nossasrelações horizontais (portanto, fora do contexto da relação vertical que se dá entre Estado e cidadãos), como se nada demais estivesse fazendo. Há algo que possa doer mais do que a dor da injustiça?

Hannah não estava preocupada com o que eu estou, mas certamente ela estava olhando para os milhões de mortos pela barbárie implementada pelo nazismo e, quando acompanhou o julgamento de Eichmann, para um burocrata que participou do sistema que assassinou milhões, mas que, em seu julgamento, foi desenhado como a personificação do mal.

Hannah, judia, filósofa, estava diante de um tribunal e, acima de tudo, de um Eichmann de papel.

Eu, que não sou judia, que apenas aprecio a indispensabilidade do pensamento filosófico para o Direito e para a vida, estou diante da banalidade do mal que está no meio de nós, mesmo não estando nós em guerra declarada, mesmo que não possamos comparar nossas mazelas com as desgraças ocasionadas pelo nazismo.

Neste mundo virtual, do qual nada disse, nem poderia dizer, a filósofa, o mal está na ponta dos nossos dedos. E, ousando acreditar que se conhece aquele que será o alvo do mal, temos ofendido, todos os dias, nossos inimigos de papel, aqueles que não raras as vezes são nossos alvos não pelo que eles de fato são, mas pelo que pensamos que são.

O mal está democraticamente entre nós.

 

*Alessandra Garcia Marques é promotora de Justiça do Ministério Público do Acre

 

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