“Doutor, não aguento trabalhar depois do meio-dia no campo. O sol ficou mais perto”. Frases como essa já ouvi várias vezes de trabalhadores rurais que estão sentindo uma elevação da temperatura. Inúmeras vezes quando compro pão na padaria local escuto histórias de aposentados de como não têm friagens como antigamente quando elas duravam muito mais dias e com temperaturas bem mais baixas. Será que temos um aumento na temperatura em nossa região nestas últimas décadas?
A resposta a esta pergunta não é tão simples porque depende do que está medindo. A temperatura que estamos sentindo pode não ser a temperatura que estamos medindo. A foto que acompanha este artigo foi tirada ao meio dia numa rua coberta com manchas de asfalto e tijolos. Ela usa ondas de radiação termal para inferir as temperaturas das superfícies. Os números representam as temperaturas inferidas da superfície. A temperatura do asfalto mediu 47.7 graus C, a do tijolo quase dez graus mais frios, 38.3 graus C, e a rua sombreada por uma árvore, 31.6 graus C.
A rua na sombra seria mais de quinze graus mais fria do que o asfalto naquele dia. Mas os valores são somente aproximados, além de fator de emissividade de materiais ser diferente, as temperaturas dependem de quanto tempo o sol está esquentando o local, da ocorrência de nuvens, etc. A sensação térmica, ou seja o que uma pessoa está sentindo seria muito diferente para uma pessoa descalça do que para uma pessoa usando sapatos. Afinal a temperatura na superfície da rua não é igual à que se sente no nível do rosto. Mesmo assim, as medidas indicam que uma rua arborizada poderia ter temperaturas da superfície ao meio dia cerca de dez graus mais frios do que no asfalto em pleno sol. Não é a toa que pessoas evitam andar nas ruas sem árvores no calor do dia.
Voltando a temperatura que está afetando os produtores rurais e os aposentados do primeiro parágrafo, precisamos diferenciar entre a temperatura do ar e a sensação térmica ou temperatura aparente. Quando a umidade relativa está alta, o corpo humano tem mais dificuldade de perder calor e esquenta mais facilmente. O vento, por outro lado, pode funcionar como o ar de um ventilador, facilitando a transferência de calor e a evaporação do suor. A mesma temperatura do ar a 33 graus C pode causar mais desconforto e problemas de saúde num ambiente com umidade de 90% sem vento, do que quando a umidade está cerca de 40% com ventania. Uma temperatura numa friagem de 12 graus celsius vai promover mais frio se tiver um vento forte porque o corpo humano vai perder calor mais rapidamente.
Para complicar mais ainda a discussão sobre o calor, temos os desafios da sua medida. Convencionalmente se usam termômetros colocadas a 1 a 2 metros do chão numa caixa ventilada que mantém o termômetro na sombra. Historicamente o termômetro mede o máximo ou o mínimo e deve ser lido diariamente. Mas recentemente temos medidores eletrônicos que registram temperaturas numa frequência de várias vezes por hora. Mas todos medem a temperatura do ar do local e não da região. Com tempo o ambiente ao redor do local pode mudar, por exemplo de floresta para um estacionamento feito de asfalto. Isto pode causar o aumento da temperatura local, dando a impressão de que a temperatura regional está aumentando quando só foi um fator de urbanização, o chamado “efeito ilha de calor.” Historicamente, houveram poucas estações meteorológicas na Amazônia e isso tem dificultado a determinação de mudanças de temperatura no nível regional.
Nas últimas décadas esta situação tem mudado e temos estimativas de temperatura de várias fontes, inclusive via satélites que permitem uma análise melhor. Temos indicações de que a temperatura em geral está aumentando. O aumento é marcante onde tem desmatamento. Em Mato Grosso, a diferença média pode ser 3 graus C entre regiões florestadas e pastagens. O efeito de desmatamento não é só restrito às áreas desmatadas mas podem aumentar a temperatura nas regiões florestadas dezenas quilômetros da área desmatada.
Bem, em termos de temperatura, a população urbana regional sofre do efeito de ilha calor acoplado ao efeito regional causado via desmatamento. A população rural tem o efeito direito do desmatamento na temperatura. Estas tendências são exacerbadas por um aumento gradativo de temperatura global que se espalha nos trópicos. Em outras palavras, a situação vai ficar mais aguda com tempo.
Chegou o momento de planejar seriamente como nós vamos lidar com este aumento de temperatura que não tem previsão de parar nas próximas décadas. A conversa na primeira frase deste artigo sugere que já chegamos a uma temperatura que está afetando a produtividade e a saúde de Amazônidas. A extrapolação para as próximas décadas implica que vamos piorar a situação, tanto para a população humana quanto para a agricultura e ecossistemas naturais. Temos que redesenhar as nossas cidades e a nossa agricultura se quisermos manter a temperatura perto de limites normais.
O Brasil se comprometeu no Acordo de Paris reflorestar 12 milhões de hectares até 2030. Se fizermos a nossa parte aqui em áreas urbanas e áreas degradadas, podemos ter ambientes urbanos mais refrescantes e reduzir o impacto de calor na agricultura regional. Ou podemos não fazer nada e sofrer as consequências.
(*) Foster Brown é pesquisador do Centro de Pesquisa de Woods Hole, docente da Pós-Graduação e pesquisador do Parque Zoobotânico da Universidade Federal do Acre (Ufac).