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O presente

Não eram nem dez da noite quando deitei ontem. Embora metade da casa ainda estivesse de pé, e eu tenha por hábito encerrar o expediente somente quando as meninas já o encerraram, ontem escolhi tomar banho, escovar os dentes e me despedir do dia, delas e do Henri mais cedo. O sono não estava adiantado, a pressa tinha outra razão de ser: faltavam somente algumas páginas do livro que venho lendo na cama e que, já desde o fim da tarde, me chamava ali do quarto. Podia ter terminado a leitura antes? Até podia, mas esse é o livro que estou lendo na cama e só na cama. Vocês fazem isso de separar as leituras por objetivo? Eu faço.

Pois bem, o livro chama-se Esboço e é uma coletânea de impressões de pessoas que cruzam o caminho de uma escritora que está viajando a trabalho no verão da Grécia. É quase possível sentir o calor dos passeios de barco, dos restaurantes e do apartamento que são cenários da história. São Paulo também anda quente e me acompanhava na cama, nosso gato filhote de quem já falei por aqui. Especialmente animado, corria de um lado para o outro como quem brinca de caça. E por mais que suas investidas no travesseiro, ainda vazio colado ao meu, me tirassem um pouco da concentração, me senti agradecida por presenciar a doçura de vê-lo se divertir tanto com tão pouco. Éramos um conjunto harmônico de duas criaturas entregues aos seus prazeres.

No quarto iluminado somente pela lanterna do celular direcionada para o livro, ele e eu aproveitávamos o fim do domingo. Entre uma virada de página e outra, eu dedicava alguns segundos para fazer-lhe um carinho ou dar-lhe beijinhos e ele devolvia, correndo por cima de mim, deitando-se ao meu lado. Faltavam duas páginas do livro quando ouvi os passos de Henri a caminho do quarto. Puxa vida, podia ter esperado cinco minutos. Ele acenderia a luz, faria algum comentário e comprometeria o ápice da leitura. Sabe quando um livro acaba e tudo que você precisa é de um período de silêncio? Então.

Ele chegou e de fato apertou o interruptor, antes de dizer qualquer coisa, montou uma expressão que não combinava com a cena. Ele era espanto, e como em um filme em câmera lenta, correu em minha direção, empurrou o gato e gritou “levanta daí agora”. Eu ri de nervoso, não levantei e olhei para o gato que fora também interrompido. Ele  trazia na boca um brinquedo que não reconheci. E o brinquedo se agitava tanto ou mais do que ele.  Não éramos só nós dois na última meia hora ali na cama. A caça era real, estávamos o tempo inteiro acompanhados de uma barata. Uma barata meio pela metade, mas ainda viva. Uma barata iluminada pela lanterna que ele, passinho por passinho, trouxe em minha direção e soltou em cima de mim como quem entrega um presente. Sim, já liguei para a dedetização. Bem-vindos ao verão paulistano.

 

Roberta D’Albuquerque

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