Fizeram dele um menino tímido, como hoje ainda é, embora todos duvidem, poucos acreditem e ninguém veja. Cumpriu itinerários rocambolescos, é certo, ao redor da Terra e por mares nunca d’antes navegados. Em viagem, depois dos dez dias fora de casa, sentia saudades da mãe e, à noite, de olhos fechados, via-a passar as mãos na cama de modo a fazê-la mais confortável para o seu deleite. Era a emoção viva e pulsante da velha alma infanto-juvenil.
Em palavras bem estudadas, disse poemetos que nunca escreveu aos ouvidos do adorável gênero, ainda que nem estivesse apaixonado. A partir de meados da segunda década, fazia esse exercício ilusionista muito mais enquanto ensaio, para quando as coisas se fizessem realmente difíceis, como nunca foram. Ficava estabelecido, assim, um maravilhoso conluio e um nexo adorável entre o malabarista e as viandantes destas galáxias.
Mas as tais características donjuanescas jamais fizeram parte do rol das manias daquela alma sacana. Não iludiu, não mentiu, não trapaceou. Apenas omitiu detalhes às vezes um tanto sórdidos, escabrosos. Os versos eram abstratos, mas as segundas intenções estavam sempre à flor da pele, ou ao redor de uma despercebida vírgula recheada de duplo sentido. Se há de escorregar, é melhor cair logo.
E foi ele por aí, vivendo a vida leve e folgazã, uma vez que o soldo republicano o permitia. Ganhava bem para um moço de vinte e pouquinhas voltas ao redor do sol.
Ademais, o que fez além de sonhar com as divas do seu tempo, foi a compra de um carro um tanto luxuoso para a província e para aqueles períodos de devaneio. Como dizia de si próprio, à época, foi levando uma vida de pequenos deslizes, crimes mínimos, pecados hediondos, furtos insidiosos em que corações foram arrancados de peitos arfantes e juvenis, aos pulos. Nada demais. Julgava a si mesmo sempre um inocente, que deixava um olho acordado, enquanto o outro dormia a sono solto.
Passou a viver pensando que os que têm alma não têm calma. Aí foi que se iniciou no mundo das emoções. Cheio de raça a partir das tripas, matou a pau. Estudou o suficiente para tornar-se, um dia, um homem feliz, um sujeito realizado, apesar das limitações marcadamente humanas. Foi aprovado em tudo o que se meteu, só não em concurso de beleza, posto que a maré nunca esteve para tanto peixe assim, e Deus achara demais da conta ofertar a ele além do merecido quinhão. O Divino acertou quando a ele emprestou o amplo tirocínio.
Certo é que, a ferro e a fogo, nele gravaram a tatuagem indelével e fria da impetuosidade. Quase se tornou uma máquina programada para ir sempre em frente. Só mais tarde é que deixou de correr atrás, porque já havia alcançado tudo, ou quase tudo.
Num dos dias de adolescente, ainda imberbe, começaram a brotar as primeiras paixões avassaladoras, cáusticas, lacrimejantes, fúteis, como é tão natural entre a maioria dos que têm idade reduzida e pouco aprendizado. Certo é que as lágrimas não caíram, mas molharam quase por completo a alma medonha.
Manteve namoro com uma mocinha que nunca soube ter sido ele um dia namorado dela. Se soubesse, daria por concluído o suposto idílio. Isso só para dizer a um tio que era um principiante cheio de qualidades. Tudo mentira tosca. Só macaquice. Coisa de iniciante.
Hoje, a família primeira ainda dá asas aos sentimentos. É emocionante pensar nas dificuldades passadas e sentidas no decorrer de uma viagem do sertão do Ceará até o Acre, em busca do pouso seguro e nunca encontrado, feito o pote de ouro da lenda.
Às vezes, como em algumas madrugadas semanais, quando rabisca garatujas na máquina de fazer doido – o computador – bate uma boa saudade dos irmãos que ainda estão por aqui para ajudar a contar as histórias desde a origem nas terras dos xapuris. A essas horas silenciosas que nos propicia o sol escondido por trás da Terra, ainda pensa ouvir os relatos encantados dos dois que se foram em busca de outros mundos e de outras glórias superiores às nossas de terráqueos urbanos fúteis e pecaminosos.
Outro dia, ele viu um menino ainda quase menino, que ganha a vida esmurrando os outros dentro de um tal octógono e fazendo-os desmaiar, se possível. Dizia o rapazola ao repórter que matara a unha um leão por dia, comera o pão que o diabo amassou, dormira no chão duro e suado de uma academia de pugilistas, morara de favor num cubículo cedido por um amigo quase irmão, foi alvo de muitos favores, mas sempre lutou bravamente para, quem sabe, um dia…, um dia… comprar uma casa bacana para a sua mãe, em Manaus… É o Zé Aldo bom de porrada.
Lembra depois os que não são bem-sucedidos, aqueles que não venceram como gostariam, como aquele que queria ser igual ao Pelé, ou aquele que se comparava ao Zico. Estes não têm sequer a oportunidade de contar as suas historinhas de vida acabrunhada. Dá pena.
Um dia, já em idade bem madura, ele escreveu sobre as razões da emoção. Desfiou um rol delas. Talvez até aqui estejam anotadas algumas delas.
É assim que acontece quando a razão começa a tomar o lugar da emoção. O raciocínio pode tornar-se lento, mas fica muito mais eficaz, com certeza. Já não se acredita em gnomos. O sol é um astro apenas com autossuficiência em eletricidade. A lua já não é a namorada dos sonhos, mas o satélite da Terra que jorra uma luz fria e serve para alimentar os sonhos de conquista dos americanos.
Tudo é muito claro. Escuros são apenas alguns pensamentos de muitos que sonham com o dia da batalha final entre um coração fantasioso que jamais deixará de pulsar e o outro que para de bater e deixa a matéria a decompor-se e a desaparecer para todo o sempre.
Há uns amigos dele que choram e têm insônia quando o time do coração deixa de ganhar. O poetinha rasteiro já não sofre desses males escabrosos. Tem filhos para criar. Eles todos querem ser engenheiros e os seus camaradas tricolores querem que ele seja ainda um fanático pelo futebol. Já não é. Já não suporta sê-lo, apesar de nutrir as simpatias por este clube tantas vezes campeão.
Tenta ele explicar que já não tem idade espiritual para fanatizar as parcas emoções. Alguns menos inteligentes desaprovam tais atitudes racionais por não verem que a idade faz pensar mais claramente, que alguma leitura de livros aos milhares faz ver que é de pão, sim, que o homem vive, e não das migalhas que caem das mesas dos mais apaixonados.
Na verdade, o Fluminense Foot Ball Club já é um entusiasmo tênue. Estive lá, na primeira quinzena do janeiro último. Fotografei o irmão apaixonado na sala de troféus e no bar. Voltei muitos anos na minha história de torcedor antes fanático. Mas já não sou o mesmo. Já não respiro o império dos sentidos. Já não me tocam as paixões avassaladoras da primeira idade, embora o tilintar de copos, à noite, ainda me deixe um tanto perplexo ante a visão da vida noturna que se renova a cada bom trovador que ouço na Lapa ou no Paço, em Vila Isabel ou no Point do Pato.
Mais um chope à nossa saúde! Viver é bom demais. Ser feliz é melhor ainda.
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*Escritor. Membro da Academia Acreana de Letras, Cadeira 27. Autor de O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, romance, disponível pelo https://www.facebook.com/claudio.porfiro >