Foster Brown
As inundações chegaram cedo este ano no sudoeste da Amazônia, mais precisamente, no Acre. Exatamente quando o sudeste da Austrália está com um dos seus piores períodos de seca e de altas temperaturas no registro histórico de mais de cem anos. Juntamente com a seca e o calor vieram incêndios e a geração de fumaça.
O impacto maior desta calamidade fica perto dos centros urbanos de Sydney, Melbourne e o capital Canberra no lado leste do continente. Alguns dias atrás, Canberra registrou uma das piores qualidades do ar no mundo em termos de material particulado fino no ar (leia-se fumaça oriunda da queima de vegetação seca). As estimativas de custos tangíveis para o país se aproximou a 100 bilhões de dólares, cerca de 7% do PIB da Austrália. E a época de queimadas ainda não terminou.
Mas a desgraça na Austrália tem pouca relevância para a Amazônia, certo? Afinal, elas estão separadas por 14 mil quilômetros. Por outro lado, a extensão territorial das duas regiões é parecida. A área de Austrália, 7,7 milhões km2, é bem similar à da Amazônia, com estimados 6,7 a 8,1 milhões km2, dependendo de como ela se defina. Mas a média de chuva para a Amazônia são mais de 2000 milímetros por ano (dois metros!), quatro vezes a média de 400 a 500 mm por ano da Austrália. Uma diferença é que, no centro da Austrália tem um deserto quando o centro da Amazônia está coberto de florestas úmidas.
Na área sudeste e nordeste da Austrália, as chuvas normalmente são maiores do que no resto da Austrália, mas as áreas de florestas úmidas com copa fechada, similares às da Amazônia, são pequenas na Austrália, cobrindo somente 36 mil km2. Elas caberiam facilmente dentro das florestas do Acre, que ocupam cerca de 140 mil km2. Este ano, grandes partes destas florestas úmidas da Austrália também queimaram, até 80% no caso de uma reserva nacional.
O inferno pelo qual a Austrália está passando já está deixando rastros enormes de ambientes queimados. Somente em New South Wales, foram 49 mil km2 de cicatrizes de queimadas até 24 de janeiro, extensivamente em florestas. Se incluir as savanas em geral, 194 mil km2 já queimaram em toda a Austrália nos últimos meses, uma área maior do que a do Acre inteiro. A fumaça gerada já fez glaciais na Nova Zelândia ficarem marrons, foi visível no céu no Chile e circunvagou a Terra. A fumaça também afetou potencialmente a saúde de milhões de australianos, seja por impactos imediatos ou que vão aparecer com o tempo.
Bem, a fumaça que vem das queimadas da Amazônia já afetou o céu em São Paulo e Paraná no ano passado, um fenômeno que se repetiu várias vezes nas últimas décadas. Neste sentido, a Austrália e a Amazônia têm algo em comum: a fumaça dos incêndios pode afetar regiões localizadas a milhares de quilômetros de distância.
O clima na Austrália é naturalmente muito variável[i], mas ela não escapa a tendência mundial de um aumento na temperatura nas últimas décadas, resultando em secas mais severas. As tentativas de queimadas controladas para reduzir o risco de incêndios extremos não estão funcionando porque o tempo quando durante o qual se pode fazer estas queimadas está se reduzindo. Até a ação criminosa de causar incêndios não explica a extensão das queimadas.
O impacto desta situação inclui a morte estimada de um bilhão de mamíferos, pássaros e répteis na Austrália, acelerando a extinção funcional de muitas espécies e talvez levando várias para extinção total. A humanidade depende de uma biosfera funcionando, reciclando nutrientes e água para começar e não pode desperdiçar estes seres vivos.
A perda de espécies – ou seja da biodiversidade – é como cortar fios elétricos de um painel de controle de um avião voando. Pode ser que alguns fios sejam redundantes e a sua perda não afete o funcionamento do avião, mas eventualmente cortando-se mais fios vai fazer o avião cair. No caso da biosfera só saberemos este ponto depois de perder as espécies chaves, não antes.
Apesar de ter mais água na Amazônia, estamos confrontando processos similares notados na Austrália com o prolongamento do período seco de quase um mês no período de 1998 a 2013 no sul da Amazônia e temperaturas mais altas nas últimas décadas. Nós temos uma varibilidade natural grande de secas como, por exemplo, a de 1925-26 que fez o período seco durar meses além do normal na Amazônia.
Quando uma seca semelhante a de 1925-26 acontecer, agora com mais potencial para queimadas e incêndios florestais no Acre devido ao espalhamento de mais pontos de ignição, as florestas podem queimar novamente. A extensão poderia ser muito além dos 3.500 km2 de florestas que queimaram em 2005 com custos econômicos, ambientais e na saúde proporcionais.
Temos sinais que este processo está acontecendo. Por exemplo, uma seca localizada na tríplice fronteira do Brasil-Bolívia-Peru em 2019 potencializou queimadas e incêndios florestais que produziram fumaça a níveis múltiplas vezes maiores do que o máximo permitido pela Organização Mundial de Saúde. As secas severas de 2005, 2010 e 2016 chegaram com uma frequência inesperada e afetaram uma área cada vez maior da Amazônia.
Em termos de biodiversidade é melhor falar de várias Amazônias porque não só espécies são diversas, os ambientes também são. Consequentemente, incêndios de grande escala na Amazônia podem afetar espécies com distribuições limitadas, talvez forçando-as para extinção funcional nas florestas alteradas por fogo.
Austrália e Amazônia parecem tão diferentes mas têm alguns fatores em comum. Austrália vai sair deste período de extremos mais pobre, possivelmente com uma população humana mais doente e ecossistemas fragilizados ou destruidos. Já vimos este filme em partes da Amazônia, como no Acre em 2005. A tendência dos últimos anos indica que vamos ter secas mais severas, sejam naturais como a dos anos de 1925-26, sejam como 2005, mas com temperaturas mais altas.
Para evitar a desgraça que a Austrália está sofrendo durante a seca severa que enfrenta, na Amazônia seria necessário minimizar incêndios quando possível e combatê-los efetivamente se acontecerem. Se não, vamos enfrentar custos muitos altos e são os nossos filhos que virão herdar.
Irving Foster Brown – Pesquisador do Centro de Pesquisa de Woods Hole, Docente de Pós-Graduação e Pesquisador do Parque Zoobotânico da Universidade Federal do Acre.