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É preciso ensinar a pensar e a agir

CLÁUDIO MOTTA-PORFIRO*

Ide e ensinai aos mais novos da face da Terra a sede da justiça, a sinceridade, a solidariedade e tudo o que lhes faça também propagar por aí afora conhecimentos tais que digam respeito ao relacionamento pacífico entre os humanos.

Daí, alguém veio a mim e perguntou se havia sido Confúcio o pregador de postulados tão básicos à convivência humana. Ao que respondi de bate-pronto:

– Nem sei. Se ele não disse, deveria ter dito.

Pois bem. Importa afirmar que a sabedoria deve ser cotidianamente revigorada à custa de um esforço ininterrupto, sob pena de se perder. Segundo Einstein, lembra uma estátua de mármore no deserto que está continuamente em perigo de ser enterrada pela areia em movimento. As mãos em serviço têm de estar continuamente a trabalhar, para que o mármore continue indefinidamente a brilhar ao sol.

Então, é conveniente deixar aqui registrados os ensinamentos de um amigo meu de longa data. É ainda hoje muito meu chegado. Comemos giz, juntos, por anos a fio, de manhã, à tarde e à noite de cada dia de Deus, durante vastas eras.

Joachim Jung nasceu no século dezesseis, na Alemanha, e ainda hoje paira acima de qualquer suspeita, ou embaixo de alguma nuvem do deserto, entre o Gobi, o Saara e o Atacama. Foi filósofo, matemático, poeta, naturalista, proseador nato, craque de bola, mal caráter e bom de cama, segundo ele mesmo. Mas há quem duvide de algumas dessas qualidades, inclusive eu, que nada tenho a ver com isso.

Já na idade senil, no presente estágio por este vale de lágrimas, cabelos branquinhos e barbicha estilo fiapo escorre das faces magras do monge circunspecto. Há corredores muito longos e as colunas que sustentam os arcos lembram cenas de há um milênio. Caminha taciturno através do piso frio de granito do monastério. Segue pensativo, a passos cansados e lentos, em vista da idade muito-muito avançada. Já ultrapassou os quatrocentos anos de idade e ainda levanta as vistas para figura fêmea protuberante, bela e cheia de curvas e reentrâncias. Ah, as mulheres.

Estava com os ovos no pé da goela.  Trabalhara por séculos a fio e, agora, apareceu um moço de pouco mais de vinte anos a querer dizer como ele deveria ensinar matemática a partir de então. Logo ele, membro da célebre academia alemã de álgebra e aritmética aplicadas.

Pensava em desistir de tudo e aposentar-se. Largar o giz e as salas de aula, retirar-se em exílio e esquecer o passado. Mas estava recalcitrante, inconformado. Pensava ainda nos alunos seus mais brilhantes, Karl Marx, Adorno e Horkheimer, que deixaram obra vasta a servir de roteiro e guia para a humanidade por todos os séculos. Uma maravilha.

Lágrimas agora lhe escorriam através do rosto vincado e pálido. Um dia, já no presente século, ele disse a uma turma de alunos secundaristas que os largaria vinte minutos antes do horário, porque tinha que ir buscar régua e compasso deixados no seu bólido de prata apelidado Corolla. Alguém perguntou, então:

– Grande mestre. Por que o senhor nos deixará tanto tempo antes do horário aprazado?

Ao que ele retrucou:

– Vocês precisariam, antes de contar e ler, aprender a pensar. Por que vinte minutos? Levem em conta o tamanho dos meus passos em idade avançadíssima. Pensem que o estacionamento está a mais de duzentas jardas deste prédio. Avaliem que farei o caminho de ida e o de volta também. Imaginem que o sinal da avenida poderá estar fechado. Aceitem que eu preciso caminhar um pouquinho sob este sol frio pra cacete. Busquem outras variáveis que podem existir. Pois bem. Aprendam a pensar.

Agora ele lembrava que, nestes tempos de modernidade líquida, rápida e escorregadia (conceito de Zygmunt Bauman), muitos são levados a deixar de pensar. Passam a enganar-se e a rir de si próprios. Entendem tudo da pior forma possível e sempre a lhes prejudicar, como bem planejaram as elites que querem os indesejáveis pobres eternamente imbecilizados. As escolas prevaricam seriamente e não lhes permitem refletir sobre a sua própria realidade miserável e sem oportunidades.

Num dia daqueles que já vão longe, em sala de aula, todos haviam ficado estupefatos com um ser que se diz mais iluminada que os carvoeiros ingleses do século dezenove. O próprio Joachim ficara entre estarrecido e imensamente admirado.

Uma mocinha de vinte e pouquinhos anos fez um alinhavado tão pitoresco que o vetusto professor houve por bem tomar anotações, a lápis, em caderninho cheio de caruncho. Ela era pálida e bela nos seus cabelos pretos. Falava um alemão cheio de sotaque do norte, mas a língua afiada não deixava pedra sobre pedra. Baseava-se em teorias muito antigas, mas escondidas das pessoas que não precisam aprender a pensar, pelo menos segundo querem as elites já robustecidas, uma vez que há trinta anos houvera terminado a segunda guerra.

Ao redor dela costumavam se reunir estudantes e camponeses empobrecidos pela rudeza da guerra que levara todos à ruína por conta da sanha louca de um idiota travestido de fuhrer.

Didática e fervorosa, com a mente fixa entre postulados marxistas e anarquistas, ela batia firme em aspectos há muito esquecidos, justo porque as fogueiras de livros iluminaram a Alemanha durante quase uma década.

E ela vociferava como um bárbaro suevo:

– Os ricos querem você longe dos livros, desinformado e manipulado. Você merece ganhar um salário bem maior, mas você mesmo nem percebe. O governo te quer ver ignorante, a igreja evangélica te deseja submisso, os empresários te querem humilhado e os bancos, endividado. Por isto, quando te digo que estude, é porque te quero ver livre e o conhecimento é a tua melhor arma.

Um moço de pouca idade falava sobre as oportunidades raras que são dadas aos mais humildes:

– Como numa sociedade feudal, hoje, o filho de um lenhador jamais poderá chegar a engenheiro, médico ou advogado, porque estará tomando o lugar do filho de um patrão, mesmo que este último seja um idiota.

Depois, a estudante bávara retomou o discurso:

– Nenhum de nós, mais humildes deste país, deve votar pela emoção. Entre os alemães, ainda são raros aqueles que usam a razão, que buscam refletir sobre o seu presente e o seu futuro. Poucos percebem que a direita quer a manutenção do salário mínimo como está.

E a viagem pega o rumo do ocidente. Vem à mente do velho professor de matemática a situação incômoda do país que ele escolheu para viver depois da guerra.

Como um mantra, ele repetia para um repórter vizinho seu, na região do pampa gaúcho:

– O melhor do Brasil é o brasileiro. Problema maior nosso é uma elite desonesta que corrompe os mais humildes e os transforma numa excrecência política chamada pobres de direita. Uma piada de péssimo gosto.

Aqui, como na maioria dos países escravizados pelos capitalistas, os mais novos, principalmente, não aprendem a pensar. Se eles assim o fizerem, poderão rebelar-se e partir em busca do que por direito é seu, o amplo conhecimento.

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*Escritor. Membro da Academia Acreana de Letras, Cadeira 27. Autor de O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, romance, disponível pelo https://www.facebook.com/claudio.porfiro >

 

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