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Temos lido muitas mãos e nenhum livro

A casa de apresentações abrira as portas logo depois das sete da noite. Já uma multidão se aglomerava para ver a reelaboração de uma peça do teatro de revista trazida de meados do século anterior para dias já avançados do terceiro milênio.

O rapazola garboso se fizera crítico de artes visuais a partir de fins dos anos noventa, quando concluiu curso específico em uma universidade de padrão nivelado por cima. Um certo filme brasileiro foi distribuído e ele, num lance de muita genialidade, fez, em um grande veículo, registro segundo o qual o trabalho seria premiado em Cannes. E foi.

De longe, o tal crítico de artes vislumbrou a triste diva conhecida de um público que já não mais busca entretenimento. Lá ela estava, sozinha, sentada a uma cadeira de boteco, meditabunda, emudecida pelo espanto que lhe causou o número de pessoas que queriam ver de novo as relíquias de um tempo que fora todo seu. Mas ela não participaria do espetáculo. Sequer conseguiria chegar perto, posto não dispor da quantia, para ela exorbitante, a ser paga pelo ingresso. Em suma, residia em um acanhado apartamento ali no centro da cidade. Aposentara-se da vida artística, enviuvara, em seguida, de um velho músico do cassino e, agora, ganhava da previdência apenas o suficiente para não morrer de inanição.

O crítico foi se achegando e reconheceu os lábios antes carnudos e hoje vincados pelo uso do batom talvez em demasia. Ele tomara conhecimento dela, na faculdade, através de fotos antigas da revista cruzeiro. Um velho xale cobria os ombros outrora sensuais. Sapatos fora de moda constituíam adorno sem graça. Um vestido dos anos sessenta ainda lhe emprestava um ar de encantamento de anteontem.

– Boa noite, distinta dama! – Foi este o cumprimento inicial. Ao que ela respondeu:

– Conheço você de onde?

– Sou do correio da manhã e gostaria de uns dedos de prosa.

Ela estampou sorriso largo no rosto de algumas rugas. Aquele belo moço caíra do céu. Anjo em jaqueta e calça jeans. Era do que ela precisava. Já entre aflita e afoita, disse:

– Sente-se, meu bom rapaz! Bom que você apareceu na minha vida, justo agora, quando estou querendo conversar com alguém do seu meio.

– Sou todo ouvidos, minha diva! – Ao que ela passou a fazer um relato, em síntese, segundo a mesma.

– Gostaria que você me ouvisse um pouco. Ando à procura de alguém que queira escrever um roteiro supimpa acerca de um tema muito atual e observável a partir de qualquer residência ou em qualquer escola.

Então, ao sabor de umas brahmas, bem ao modo carioca de ser, a musa deitou verbo sobre os costumes e manias das novas gerações, ao que tudo anotava o crítico das artes gerais.

Uma sobrinha dela, por parte do marido morto, expusera-se demasiadamente em uma rede social, fisgara um playboy da zona sul, consumira bebida e drogas, apaixonara-se e, enfim, estava de barriga, prestes a dar à luz. E havia a famigerada pior parte: o dom juan da era da cibernética se fora para a Europa, onde moram os pais, em país e endereço incertos e não sabidos.

Segundo a matrona, o roteiro a ser escrito seria sobre gente que fica chorando sobre o leite derramado:

– Como diz o poeta Siqueira, ou você limpa o chão, ou lambe o leite. Mas, pelo amor de Deus, não reclama. O leite não vai voltar para o pacote.
E continuou.

– Feito cartomantes ciganas oportunistas, temos lido muitas mãos porque analisamos as pessoas a partir do que elas têm, ou dizem ter, em termos materiais. Aquele que tem o carro do ano é bom. O bacana que tem o apartamento na barra é o melhor. Tiro pela minha sobrinha. Ela é a minha referência em termos de vida modernosa e doida e fútil e pobre.

A musa antiquada deitou falação sobre a sobrinha e a mãe desta. Atestou que a menina, antes agarrada a um computador portátil, agora não largava um celular e tirava fotografias da bunda, às vezes em pelo, para divulgar as nádegas e os outros atributos físicos através das redes sociais. Disse que um moço do banco estadual houvera lhe prometido casamento, ano passado, quando ela tinha dezoito anos. A mãe achou tudo um despautério. Ele era muito sisudo e estudioso, mas não passava de um mequetrefe. A filha estaria por merecer alguém de mais, ou de muito mais prestígio, mesmo que fosse só da boca pra fora. E deu no que deu. A moçoila agora estava prenhe de últimas semanas e o bom partido escafedera-se.

A estrela do teatro rebolado fizera curso superior na faculdade cândido mendes, financiado por empresário do ramo do orgasmo. Foi professora de artes e soube demonstrar algum talento por vinte anos nas salas de aula. Não era apenas um rosto bonito a mais nos calçadões da vida. Discorria com destreza sobre teatro, cinema, televisão, dentre outros.

Agora, no entanto, ficara intrigada com essa parafernália modernosa que, segundo ela, estava a causar estragos no seio das relações sociais. Certas vias da internet constituem artefatos devastadores da moral e dos bons costumes se colocados nas mãos dos maus. Pior de tudo é que os usuários das redes sociais, na superior maioria dos casos, nunca leram um livro sequer e por isto escrevem tão mal. Ridículo.

Passados dois dias, então, via correspondência eletrônica, dela o crítico de artes recebeu e-mail que dava rumos bem definidos ao trabalho que se pretende de grande repercussão.

Em síntese, segundo a ninfa, o recado tinha ares de uma análise sociológica no fio da navalha em tempos de mídias tão diversas.

– Tenho observado que a filhotinha, de treze a dezessete anos, pode ser uma destas que postam, nas redes sociais, fotografias em trajes mínimos e insinuantes. Nestes tempos de pedofilia no pé da goela, o gorila papa anjo já deixa escorrer a baba de tanto desejo. Para boa parte dos admiradores do belo sexo, independentemente da idade, escapou de menininha doce e bem comportada, já vira prostituta, embora não esteja longe de ser esta a realidade. Em um ambiente aberto como a rede, mesmo sendo virtual, ninguém é de ninguém e muito menos aquelas que choram um olho e lacrimejam o do lado quando veem uma nota de cem dólares deitada sobre a outra… Cuidado! A vida é mesmo assim.

– As redes sociais são uma torre de babel modernosa e um museu de grandes novidades. Desfilam ali pessoas de todos os naipes do baralho. Há uma ex-professora, minha amiga, de mais de sessenta voltas, que escreve por meio de palavras sapientíssimas. A seguir, aparece uma prostituta – femme fatale – sem roupa e com um número de celular estampado no lugar da perseguida. Aí, surge um rapazola que não contribui em nada para com a construção do nosso belo quadro social, não trabalha, mas reclama de tudo ao redor. Depois, é a vez de um revoltado que expõe toda a sua bílis fedorenta em ataques contra quem quer que seja. Está ali também o meu pároco gente boa. Há o bom político e o oportunista safado, além de um poeta menino muito fera e umas menininhas em roupas mínimas querendo impressionar os cinquentões, como o Spencer Attenborough, um sujeito de muitas posses e dinheiro para distribuir entre aquelas do belo sexo que fazem barba, cabelo e bigode. Tem de um tudo, meu bom rapaz.

Em verdade vos digo que esqueceram de vigiar e não se lembraram de orar. Chafurdaram na sopa. Lambuzaram-se no glacê. Escorregaram na maionese. Lamberam as almas escondidas por trás da volúpia deste terceiro milênio. Derramaram o leite, ora pois, e agora já não há como devolvê-lo ao pacote.

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CLÁUDIO MOTTA-PORFIRO

*Escritor. Membro da Academia Acreana de Letras, Cadeira 27. Autor de O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE e DOIS RAIOS DE SOL E MEIO PALMO DE LUA, romances, disponíveis pelo https://www.facebook.com/claudio.porfiro e na plataforma do Clube de Autores.

 

 

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