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Uma morte entre muitas. O novo normal não precisa ser normal.

Sábado à tarde eu estava treinando num parque em Rio Branco quando vários tiros ecoaram.  Dois jovens jogadores e eu fomos correndo na direção de onde vieram os tiros e encontramos um homem no chão. Realizou-se mais um assassinato no Acre, onde desta vez, eu vi literalmente uma vida sendo ceifada.

Existe uma frase de vários possíveis autores que diz que uma morte é uma tragédia, um milhão de mortes é uma estatística.  Motivada por essa tragédia, decidi analisar as estatísticas para ver se encontramos uma solução, ou pelo menos dimensionamos melhor o problema.  Fiz uma análise similar a este tema quase dois anos atrás neste espaço.  Afinal a situação no Acre não melhorou, como vamos ver.

Homicídios acontecem no mundo inteiro.  Mas será que os homicídios aqui são atípicos ou representam uma tendência geral, um novo normal?  Para comparar entre países, podemos usar a definição das Nações Unidas para homicídios intencionais.  A definição inclui três elementos: 1) uma pessoa foi morta por um outro; 2) a intenção foi matar; 3) a matança é ilegal.  Esta definição não inclui suicídios, mortes oriundas de conflitos armados, autodefesa e negligência.  Porém inclui todos os gêneros.

Para comparar a nossa situação às de outros países que têm populações que variam de menos de um milhão até mais de um bilhão de pessoas, podemos normalizar a taxa de homicídios por cem mil (100.000) habitantes por ano, abreviado como h/cem-mil/ano.

Para facilitar a comparação de grupos de países, a mediana permite saber o valor que fica no meio do grupo.  Os dados oriundos da ONU são de 2017, com alguns casos de 2015, e são arredondados.

Os EUA tiveram cerca de 5 h/cem-mil/ano em 2017.  Pode aparecer baixo, mas a mediana para toda Europa para o mesmo período foi 1 h/cem-mil/ano, cinco vezes menor.  No leste da Ásia, que inclui a China e o Japão, a mediana foi menos de 1.  Os EUA são uma anomalia entre os países desenvolvidos. Até o Canada, um vizinho dos EUA, teve somente 2 h/cem-mil/ano.

Na América do Sul a situação fica mais grave.  A mediana dos países foi 8 h/cem-mil/ano em 2017.   Alguns países com Argentina, Chile, Bolívia, Peru e Uruguai ficaram com valores entre 4 e 9 h/cem-mil/ano.  Quem se destacou de maneira negativa foram Colômbia e Brasil com 25 e 31 h/cem-mil/ano, respetivamente, mais de três vezes a taxa de homicídios da mediana de todos os outros países do continente. A Venezuela também teve uma taxa muito alta.

Existem outros países com a taxa de homicídios semelhantes à do Brasil?  Sim, a mediana da América Central foi 25 e a taxa de El Salvador alcançou 62 h/cem-mil/ano.

E o Acre se enquadra onde neste espectro de violência?  O Ipea estimou que no Acre os homicídios por 100.000 por ano foram 27 em 2015, 44 em 2016 e 62 em 2017.    O Anuário Brasileiro de Segurança Pública estimou 61 h/cem-mil/ano em 2017 e 46 em 2018, uma redução aparentemente significativa.   A mesma fonte indicou que a situação foi pior na capital Rio Branco, com 84 h/cem-mil/ano em 2017 e 59 em 2018.

Uma reportagem mostrou 229 homicídios em 2019, dividindo pela população do Acre de 882.000 habitantes, o valor seria 26 h/cem-mil/ano em 2019.  Melhorou em comparação com os anos passados, mas ainda é um valor mais de três vezes superior à mediana da América do Sul.

E este ano?   O ano não começou bem, com 47 mortes violentas somente em janeiro.    Este valor, extrapolado para o ano inteiro, daria 64 h/cem-mil/ano para o Acre em 2020.

Uma conclusão que podemos tirar desta enxurrada de dados, organizada no gráfico anexo, é que a quantidade de homicídios no Acre está fora de padrões internacionais normais. Estamos em um extremo,  semelhante aos de alguns países da América Central.   A violência em alguns destes países está provocando migrações de até meio milhão de pessoas que procuram proteção e asilo em outros países.

Temos um problemão e o que podemos fazer? Primeiro, não tratar a violência como algo isolado.  A redução de violência, como homicídios e suas causas, está ligada à maioria das metas de desenvolvimento sustentável da ONU.  De fato, a morte intencional de uma parte da sociedade não leva a uma sociedade sustentável, mas alimenta a sensação de insegurança que está tomando conta da sociedade acreana e tem custos econômicos, educacionais, sociais além dos psicológicos.

Segundo, podemos analisar os por quês de tanta violência.  Seis meses atrás a ONU publicou uma analise das causas de violência no mundo inteiro e a América Latina se destacou como um caso à parte.

Podemos discutir estes fatores e suas ligações a outros problemas como as crises ecológica e do clima; Papa Francisco notou que tudo está interligado. Enquanto os problemas são interligados, as soluções também são.  Em outras palavras, uma ação pode resolver mais do que um problema.  Na própria publicação da ONU existe uma serie de soluções sugeridas. Podemos discutir estas nas esferas políticas, econômicas e sociais para determinar quais destas soluções podem servir aqui.

Terceiro, a situação é complexa e precisamos evitar a armadilha de simplificá-la demais porque “sempre existe uma solução conhecida para qualquer problema humano – pura, plausível e errada.” Outros lugares conseguiram resolver problemas de violência e nós podemos fazer o mesmo aqui.  Não fazer nada é um receita de ter o novo normal ficando normal, com a violência apagando vidas e empobrecendo a nossa sociedade.

 

Irving Foster Brown – Pesquisador do Centro de Pesquisa de Woods Hole, Docente de Pós-Graduação e Pesquisador do Parque Zoobotânico da Universidade Federal do Acre.

 

 

 

 

 

A Gazeta do Acre: