A luta das mulheres foi importante para conquistar espaço fora do ambiente doméstico e para a evolução jurídica em relação a seus direitos, o que contribuiu de certo modo para a redução das desigualdades de gênero. No entanto, temos de admitir, ainda subsiste uma visão atrasada que coloca a mulher como objeto de posse. Tanto que certas abordagens masculinas são toleradas como simples inconveniências pelo senso comum.
Esse pensamento vigente na sociedade é responsável por formas de violências, explícitas ou silenciosas, que causam morte, danos, sofrimento físico, sexual ou psicológico. O tratamento dado por séculos à mulher, como mero objeto de satisfação sexual, comprova a objetificação de seu corpo, anulando sua individualidade.
A consequência disso é a banalização e estereotipação da imagem feminina, em que atributos físicos sobressaem em relação a outros aspectos do ser humano. Tão forte é a ideia de posse, que agressões graves são minimizadas, e a vítima culpada. É daí que vem a ideia de que a mulher vítima de violência sexual, por exemplo, tem culpa por causa das roupas que usava ou do lugar em que estava no momento da violação.
Precisamos combater a ideia de posse. A mulher é um sujeito autônomo, um ser completo e ninguém tem a liberdade de tocar seu corpo sem consentimento, tampouco constrangê-la verbalmente ou gestualmente, atitudes que, de tão naturalizadas, são confundidas com galanteios, mas que não passam de grosserias que ferem a dignidade.
Foi preciso estabelecer limites claros. Com a mobilização popular motivada por casos de grande apelo na imprensa e o vácuo existente no ordenamento jurídico, o Estado criou a lei que tipifica a importunação sexual como crime. Não mais uma contravenção penal ofensiva ao pudor, ou seja, pequena infração aos costumes punida com multa pelo Código Penal. Ora o foco são as vítimas — a maioria delas mulheres.
Palavras chulas, toque nas partes íntimas, brincadeiras invasivas, condutas que têm o objetivo de satisfazer desejo sexual, agora são punidas com pena mais dura, de um a cinco anos de prisão. Se antes nos dividíamos entre estupro e ofensa à ordem moral, sem resposta à altura da gravidade do ato, eis que surge o crime de importunação para reafirmar um direito sagrado, que é o de nos relacionarmos com quem quisermos.
Desta sorte, a criminalização de tais comportamentos foi importante para nos voltarmos para o problema. Porém acreditamos que a mudança cultural também se dá com um trabalho de educação e informação. E é assim que o MP acreano encabeça uma campanha nos dias de folia momesca com o objetivo de não só combater, mas também prevenir, atos que desrespeitam a dignidade das mulheres e pessoas mais vulneráveis.
Com o apoio de instituições públicas, empresas e os meios de comunicação locais, estamos nos mais diversos cantos alertando contra o assédio e importunação sexual. O MP, tendo como fundamento a dignidade da pessoa humana, vai às ruas deixar uma mensagem clara: o carnaval expressa alegria, pertence a todos e representa o que temos de mais humano. Mas com direitos não se brinca, e isso requer respeito aos limites.
Kátia Rejane de Araújo Rodrigues é procuradora-geral de Justiça do Estado do Acre