Ficavam bem ali os dois parados, ombro a ombro, em plena solidão, como na poesia. As escadas e o pórtico do velho solar lhes serviam de poltrona e abrigo. Extasiados, viam, todos os dias, o sol se pôr por trás do arvoredo amazônico próximo à vivenda dos prazeres tardios. Depois, era a vez de apreciar a lua a erguer-se brilhante e translúcida e diáfana e pura e linda, como o um e o outro corações cheios de amor para dar e não para regatear a qualquer preço. Manhãzinha então, eles despertavam ao canto da passarada a chilrear em verso e prosa, deles, a felicidade geral da nação anunciada pelo alvorecer.
Eram de repente, não mais que de repente, tão jovens, tão belos, tão fagueiros e cheios de tanta vida. Melhor era que a natureza conspiradora jogava todas as cartas, inclusive as da manga, sempre a favor dos afetos trocados todas as horas de todos os dias das suas felizes vidas.
O Arthur, o filósofo alemão, deixou grafado em bom papel alguma coisa parecida com um aforismo segundo o qual a serenidade e a vitalidade da nossa juventude baseiam-se em boa parte no fato de que nós, ao subirmos a montanha, não vemos a morte, uma vez que ela se encontra do outro lado da encosta.
Sucederam-se mil invernos de felicidade a tiritar de um frio amenizado pelo amor a dois. Vieram primaveras de flores e presentes diários que regavam o apego ainda latente, pulsante. Os verões cálidos chamavam ao deleite, ao prazer. O outono frutífero adocicava ainda mais a relação que, parecia, durava já alguns séculos.
Vieram, então, épocas de despertencimento, de paulatino afastamento, arrefecimento mesmo, posto que os filhos marcaram encontro e decerto esqueceram de comparecer. Entre a vasectomia e a esterilidade, estabeleceu-se um pacto de frieza e desamor, que se foi tornando cotidianamente mais e mais fugidio, fugaz, como a escorrer por entre os dedos dos pés, feito a lama do charco fétido da última fronteira dos corações em frangalhos, mortos vivos e enlameados até os ossos inexistentes.
As rusgas passaram a ser contendas. Para o parceiro, todas as culpas da falência dos espíritos eram dela. Segundo ela, o amor degringolara por responsabilidade do seu homem. Entre mortos, feridos e maltratados, todos haviam sucumbido pela falta de um apego que vicejara um dia atrás do outro por séculos afins… Mas desafinou e bem desafinado.
Veio, enfim, o momento fatídico que sequer mereceu um adeus. Cada um tomou rumo ignorado em relação ao outro. A separação teve direito a divórcio litigioso em que a partilha dos muitos bens foi decidida nas barras dos tribunais.
Tempos depois, num encontro casual em meio à turbulência da cidade grande, sequer chegaram a se cumprimentar, apesar de se terem visto.
As raivas básicas já haviam sido amenizadas. Bons e maus pensamentos, então, passaram a povoar a cabeça de ambos. Não haveria a volta tão sonhada pelos parentes e amigos mais próximos. Não mais havia jeito que desse jeito.
Numa dessas noites de insônia febril – muito peculiares aos corações despedaçados por um sofrer sem remédio – a ex-amante, como num passe de mágica, passou a anotar em um diário cinza as razões básicas do rompimento. Ali ela observou que para um homem ser feliz basta que a natureza se permita cumprir uma pequena série de itens super básicos e muito, muito elementares.
A paixão recolhida houvera feito a moça esquecer os postulados fundamentalistas pregados pelas leituras das obras da senhora Marguerite Yourcenar, a feminista antes deveras irreal e hoje tão ultrapassada. (Para e escritora, as mulheres são máquinas fúteis que podem prender a respiração debaixo d’água por até três meses de todo um ano.)
As recordações buscavam espaço no cérebro em lágrimas tardias e escorregadias…
Ainda nos tempos sublimes, Candice Donovan, a esposa então amada, passou a viver uns esquecimentos em série, muito esquisitos para uma mulher prendada em níveis altíssimos nas artes culinárias, nas manuais e nas do amor. Ou o sal abundava nos rosbifes antes divinais, ou faltava, no refogado de vaca das segundas-feiras. Já não tinha mais as medidas dos temperos. Errava todos os dias como se fosse de propósito. Bruce Springsteen, enfim, passou a frequentar a birosca do Almeida, na Gamboa, onde caía muito bem a dobradinha inominável cuja base para o gosto dos deuses era o manjericão, o paio e a fava. As comidinhas para antes, durante e depois do sexo perderam muito em qualidade. Como o Vinícius bem aconselha, podem ser ovos mexidos, camarões, sopinhas, molhos, estrogonofes… e amor a esmo. Depois um tutuzinho com torresmo conta ponto a favor.
Numa das noites, resolveu, elazinha, dormir no sofá sem nenhuma justificativa, o que se tornou costumeiro, principalmente depois do sexo que já não era mais rotineiro, como nos tempos serelepes. Um dia, ela até amanheceu dormindo sobre as fronhas, enrolada em um edredom felpudo vindo do Paraguay. Ninguém se deu ao luxo de dizer: durma ou fique acordada com ele, em que posição for, seja de ponta cabeça ou de revestrés, como manda a santa mãe natureza.
Em algum canto da casa estava escrito, num quadrinho emoldurado por madeira escura e bordado em ponto cruz: deixe-o em paz. Ao contrário, ela o atormentava arranjando até amantes para um homem que sempre fora símbolo da fidelidade conjugal, como o poeta que vos alinhava essas tão mal traçadas linhas.
Candice passou a encrencar porque o pobre homem ia, rotineiramente, ao bar da esquina, à noite, de onde um amigo lhe acenava com um taco chamando-o a jogar um bilhar, como naquele samba choroso. Ela houvera esquecido um mandamento básico: deixe-o sair com os amigos, sempre.
Na manhã de um daqueles antigos dias felizes, durante os quarenta minutos em que ele fazia a higiene matinal, ela houve por bem bisbilhotar a caixa de mensagem do marido. A ela o padre não disse que, para um homem ser feliz, basta que nunca a esposa lhe vasculhe os segredos do celular, apesar de ali nunca haver os tais segredos de alcova.
E olhe, minha senhora, como são as coisas. No amor, é como na sopa. Quanto mais tempero, melhor, desde que não haja a mão pesada de um desajeitado a colocar tudo a perder.