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Eu não casaria comigo nem a pau, Juvenal!

Naquele ambiente, todos o respeitavam, quase sem exceção. Não construíra inimigos, pelo menos declarados. Andava de par com a serenidade da coleção de primaveras vividas desde meados do século anterior. Distribuía sorrisos e alguns galanteios para as agentes do belo sexo que sempre bem o merecem. Pensava como os judeus mais antigos segundo quem as pessoas de mais idade merecem respeito não pelos cabelos brancos, ou pela testa franzida, mas por aquilo que de bom fizeram pela vida afora.

Depois da primeira sessão, então, o terapeuta ficara impressionado. No rosto do paciente mulato, as rugas praticamente inexistiam, apesar da proximidade da sexta década. Os cremes rejuvenescedores ou o protetor solar haviam desempenhado um papel fundamental. Bastante extrovertido, disse tingir o cabelo de um certo cinza escuro azulado há bastante tempo. Afirmara frequentar academias de musculação desde muito moço, ainda manhãzinha, além das caminhadas no parque, ao lado de certa companhia feminina agradável, ao entardecer, como no bolero.

Muito versado e viajado, usava roupas elegantes, mas um tanto básicas. Portava-se como o cavalheiro de fino trato e inteligência aguçada que sempre foi. Sorridente, dizia palavras graciosas de duplo sentido, o que o fazia parecer sempre de bem com a vida. Numa síntese perspicaz, dele próprio, afirmara ter muitas ocupações e, por isto, não arranjara tempo para envelhecer.

No bom sentido, ainda em criança, aprendera a arte de cortejar, ou de viver bem, em acordo com os demais, posto que o pai, apesar da origem humilde, era tido e havido na pequena comunidade como um bom homem, sempre pronto a favorecer a quem quer que fosse com os seus obséquios, serviços e o ombro amigo.

Cumprimentar as pessoas, respeitosamente, passou a ser a marca registrada do menino bacana portador de uma alma cheinha de picardia e malandragem na medida certa. Os professores o tinham por estudioso. Os colegas o percebiam enquanto um garoto compenetrado. Com foco.
Ouviu conselhos de uma professora ou duas ou três. Aprendeu a jamais falar alto. O seu verbo passou a ser compassado e correto. Leu muitos clássicos da literatura universal e outros da tupiniquim. Atuou como orador da turma por aí afora. Houvera conseguido o domínio da palavra fácil.
Foi aí, então, que ele saiu da sua pequena aldeia em direção à capital da província. Lá, uns garotos de alta idade apresentaram-lhe o tal basilar, chamado cigarro do capeta pelos íntimos. Ele teve esse contato em apenas umas três ocasiões. É que os perfumes franceses custavam muito caro e o mal cheiro da maconha tornava tudo um desperdício. Além do fato de as moças não tomarem chegada de quem carregava consigo aquela catinga repugnante. Passou.

Um curso de letras bem acabadas quase o ensinou a arte da construção de poemas de gosto acima do mediano. Mas, antes, ele se especializara em alguma prosa contida nos documentos redigidos pelo agora barnabé federal. A poesia fluía, sim, naqueles feriados de meio de semana, ou aos domingos, quando não se acercava de nenhuma garrafa ou lata de cerveja. Todavia, os sonetos eram feitos e logo entregues à primeira diva ou ninfeta em quem ele colocava as vistas cobiçosas.

Aprendeu a tratar as mulheres com rosas e rimas. Uma amante sensualíssima ensinou a arte maior que é presentear as mulheres com flores, às quais ele juntou talvez a mesma poesia entregue no dia anterior a quem quer que fosse. A ocasião faz o cidadão que comete galanteios de sol a sol, a torto e a direito. Ora, pois-pois!

O poeta mulato tem razões de sobra. Não há loura ou morena que não pense loucuras ao ouvir o Soneto de Fidelidade, do Vinícius, declamado por quem tem boa entonação. De tudo, ao meu amor serei atento antes. / E com tal zelo e sempre e tanto / Que mesmo em face do maior encanto / Dele se encante mais meu pensamento (…)

Não há negra ou mulata que não se derreta ao ouvir o Caetano dizer que Você é linda / Mais que demais / Você é linda, sim / Onda do mar do amor / Que bateu em mim (…)

Coisas como estas tornam qualquer homem um pouco mais inteligente um galanteador por excelência. Isto é regra sem exceção. Basta adicionar a esta receita um perfume de bom gosto, um pouco de coragem e um tanto de charme ou elegância. E feito. Está pronto o homem que dez entre dez mulheres mais buscam. A astúcia é a moral das melhores histórias.

Com os salários que lhe caíam pontuais, mês a mês, as coisas boas da vida foram acontecendo. Um carro novo. Uma casa própria. Veio, daí, o próximo passo. Tornou-se um notívago contumaz, boêmio de marca maior, mas sem descuidar as obrigações de funcionário público.

Não tardou e apareceu-lhe uma odalisca em tenra idade. Veio um casamento conturbado, forçado, com certeza. De início, as sextas e os sábados à noite e de madrugada eram preenchidos sob o tilintar de copos e das luzes da ribalta, digamos assim. Ele não enjoava. Nunca enjoou da rotina. Em três meses, no entanto, a mocinha não mais quis ir tanto ao boteco noturno mais badalado da cidade. Também não queria que ele fosse. Mas ele foi e a falência da união aconteceu em poucos dias. Cada um pegou rumo ignorado.

Passaram-se alguns anos e ele fugia do casamento como a raposa da arapuca. Eis que, então, apareceu-lhe morena clara, alta, cabelos lisos e linda como ela só. Ataram uma situação em que houveram por bem ir morar com a mãe dela que ficaria sozinha se assim não fosse. E veio o dia de um baile bacana, de casamento. Ele, com a mente um pouco entorpecida pela ingestão de cerveja, acompanhou o rebolado e as ancas de uma moçoila não tão bela quanto a sua. Veio um safanão e ambos se foram para casa em hora indevida da festa.

Mais um enlace escorregou por entre os dedos do saltimbanco e ele foi ter, depois de um bom período, com uma moça de espírito pacífico que, felizmente, agora sim, permitia-lhe andar leve e folgazão pela noite afora. Ufa! Quase ele não encontra este tipo escasso de mulher prendada e tranquila de viver consigo próprio e com o marido que escapole a cada piscar de olhos.

Os casamentos e noivados desfeitos, os barcos afundados, os corações partidos, os barracos desabados e as vicissitudes da vida fizeram dele um amante das mulheres inalcançáveis, como a Sharon Stone, o seu sonho de consumo na pós-modernidade.

Eu não casaria comigo. Jamais. Estas frases são da autoria intransferível do nosso troteador dos sete mares.
Hoje, enfim, ele diz saber da vida um pouco e está sempre em fase de aprendizado, principalmente, com esta gente mais nova que lhe ensina, com muito carinho e jeito, as artes da informática avançada e do amor entre poucas paredes.

Cá de minha parte, deixando de lado os saracoteios do nosso pândego incurável, permito-me lembrar Nietzsche, o filósofo alemão que nos deixou algo parecido com a afirmativa segundo a qual todo homem é uma ilha e entre nós existe um oceano de dúvidas e incertezas. Viver é atravessar esse mar.

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CLÁUDIO MOTTA-PORFIRO*

*Escritor. Membro da Academia Acreana de Letras, Cadeira 27. Autor de O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE e DOIS RAIOS DE SOL E MEIO PALMO DE LUA, romances, disponíveis pelo https://www.facebook.com/claudio.porfiro e na plataforma do Clube de Autores.

 

 

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