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Lágrimas vadias de um coração selvagem

CLÁUDIO MOTTA-PORFIRO*

Por aqueles dias, já havia cessado o rufar dos tambores e o sibilar estridente das cornetas. Os patriotas colegiais já se haviam recolhido à sua rotina dinâmica. As freirinhas da bem-aventurança corriam de um lado para o outro nas suas vestes que deixavam à mostra apenas os rostos finos, belos, pálidos, romanos, sisudos, e tênues mechas de cabelos negros que se faziam escorrer além da túnica. Setembro voava e a preocupação maior já era o êxito de cada aluno e a vitória do próprio colégio.

Coisa de Deus.

Outros setembros voaram céleres. As conquistas futuras exigiriam esforços hercúleos. Bom foi observar que as leituras diárias na biblioteca colegial foram o maior alicerce da vida do menino de asas longas. Lá, ele leu até boa parte da enciclopédia mirador internacional, além dos romances. Em casa, depois de haver eliminado todas as disciplinas e, por estar desocupado, o pai lhe mandava estudar o dicionário. Por isso, ficou prolixo.

O plano da família era evadir-se para a capital em busca de outras luzes. E foi o que aconteceu. Os professores na cidade natal diziam que os concursos públicos acolheriam de bom grado os filhos da princesa. Então, a meta dos pais passou a ser tornar todos os filhos funcionários públicos de algum valor. E aconteceu melhor ainda.

Havia pressa no garoto de dezessete anos. O servente de pedreiro trabalhava de dia, estudava à noite e rezava mais tarde. Não havia como não dar certo.

Um dia, enfim, tornou-se funcionário público federal. Corria o ano de 1978. Defendeu com unhas e dentes um honroso segundo lugar para os quadros da Universidade Federal do Acre. Tempos melhores haviam chegado. A aguardente de cana foi imediatamente substituída por uma tal bebida chamada cerveja. O carro zero bala passou a ser um corcel dois.
Rememorando Vinícius de Moraes, a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida. Em síntese, vivemos bem, porque encontramos por aí pessoas de bem. E isso facilita tudo.

Na biblioteca do Colégio, o menino de asas douradas fez contato com muitas almas extremamente saltitantes de livros que tinham até milênios de existência, dentre os quais A República, de Platão. E lá estavam Gregório de Matos, Basílio da Gama, Gonçalves Dias, José de Alencar, Machado de Assis, Lins do Rego, José Américo de Almeida, Rachel de Queirós, Cecília Meireles, Clarice Lispector, e por aí vai.

Jorge Amado chegou à residência da Rua das Castanholeiras pelas mãos do irmão do meio. Gabriela, cravo e canela não podia estar nas estantes das freiras. Naquela época, anos 70, a peça era quase um livro de sacanagem. Bem, depois, ele se aprofundou no ramo, quando leu tudo da Adelaide Carraro e da Cassandra Rios. Só muito depois apareceu a Mila Wander e O safado do 105, o livro… Mas isso já são outros quinhentos.

Aprendeu a juntar letrinhas em casa, com a mãe Francisca e irmã Regina. No primeiro ano da escola convencional, se encantou com O patinho, poema infantil da Francisca Júlia. Um dia, então, como compôs o Paulo César Pinheiro, beijaram a minha boca e eu me tornei poeta
Danou-se.

Quando adolescente imberbe, passou pela vida do menino anotador de tudo – e ainda passa – uma bela jovem e hoje dama, que atende pelo nome de Euri Figueiredo. Foi ela que o fez decorar e recitar em público A prece do Brasileiro, do Carlos Drummond de Andrade, no dia 7 de setembro de 1972, o ano do sesquicentenário. A cidade princesa era de um fervor patriótico inesquecível.

Aos dezenove, apareceu-lhe um anjo elegante vestido em paletós claros, calças escuras e gravatas vermelhas. Era o boníssimo José Higino de Souza Filho. O moço simplesmente pedia que fossem guardados em gaveta especial todos os rascunhos manuscritos por ele. Foi aí que o rapazola se fez burocrata e esqueceu a namorada antiga, a poesia.

Inspirado no irmão procurador e achador de futuros, através de concurso público – segundo lugar – chegou aos pórticos e adentrou a casa de saber que, mesmo indiretamente, lhe outorgou títulos muito importantes. Dois moços lhe fizeram as honras da instituição e o receberam muito bem: Antônio Francisco da Silva, um pai, e Francisco das Chagas Muniz Ribeiro, um irmão.

No curso de letras, uma moça distinta corrigiu o seu primeiro texto, diria, de nível superior. A Ducélia Mota Lopes fez alguns adendos e elogios rasgados. O curso de direito – preferiria esquecer – foi pelo ralo, abandonado porque a esbórnia juvenil falou mais alto.

Depois, em 1985, o Dandão indicou e o Martinello o recebeu de braços abertos nA Gazeta. Ah, as minhas garatujas.

O menino das asas possantes houve por bem voar na direção da Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp. Foi aprovado numa seleção bem apurada. Teve que produzir um texto de três laudas, em inglês, falando sobre o Emílio, o livro de Rousseau. O orientador era um moço tão simpático que assinou como avalista o primeiro aluguel em Campinas. Nome dele: Augusto João Crema Novaski.

Já no Doutorado, o orientador era meio do estilo pá virada, mas extremamente atencioso. Com o José Claudinei Lombardi, Zezo para os íntimos, além das pistas para a construção da tese, às sextas-feiras, no período da tarde, quando já pouco adiantava ficar lamentando a morte do Karl Marx, havia umas cervejinhas prolongadas e umas cachacinhas bem redondas. Saravá!

Funções gratificadas na casa mãe do saber deram ao saltimbanco uma vida cheia de salamaleques. Mas surpresa maior lhe fez a professora Ingedore Koch, do IEL / Unicamp, antes de morrer. Ela disse que o menino e anjo está a inaugurar um novo estilo de escrever prosa e verso. Aqui mesmo, foi o Telmo Vieira que asseverou algo parecido: tascou-me um codinome, Juvenal, numa alusão ao poeta Antunes, do século passado.

Bem. Será que ele é mesmo tão sacana assim? Glória a Deus.

Para corroborar o tal new style, vejamos um excerto em prosa:
Veja só. Mal completou dezessete outonos esfumaçados e já está um traste. Coitada. A cara ficou repuxada no rumo das orelhas. Os dentes amareleceram. Os olhos já não têm aquele brilho juvenil. Os peitos parecem massa de pizza mal dormida. As pernas secaram. A bunda não dá mais um pastel. Tenho cantado a pedra e falado que mulher linda e burra só serve pra ser usada e depois abandonada. (Do livro DOIS RAIOS DE SOL E MEIO PALMO DE LUA, em fase de lançamento.)

E os versos malamanhados do poema PERFIL VULGAR.

Um sorriso no rosto e a pele morena,

O peito largo e a bunda pequena
Disseram que eu não valeria à pena
Então, a todos tive que contrariar.

 

O cabelo é castanho ondulado
A verve tem gosto almiscarado
Vai galanteio pra todo lado
Tudo adianta e o melhor é amar.

 

Mas que não seja um amor a esmo
Se ficou ou se foi, vai dar no mesmo
Depois um arrozinho com torresmo
Como o poeta maior dizia gostar.

 

De mim dizem ter olhar penetrante
Às vezes bondoso, mas nada excitante
A alma serena e a voz cativante
E mil rimas fúteis para agradar.

 

E nem é preciso muito afago
Não quebro e nem causo estrago
Os olhos são da cor de um lago
Infestado de piranhas refletindo ao sol.

***

Realmente, alguém tem sempre razão. Tudo isso é a minha cara. Sem tirar nem botar, como se diz em bom acreanês.

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*Escritor. Membro da Academia Acreana de Letras, Cadeira 27. Autor de O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE e DOIS RAIOS DE SOL E MEIO PALMO DE LUA, romances, disponíveis pelo https://www.facebook.com/claudio.porfiro e na plataforma do Clube de Autores.

 

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