X

Por que a pandemia do novo coronavírus produz tantas mortes?  O papel de crescimento exponencial

Foster Brown e Gerbson Maia

A doença chamada covid-19 causada pelo novo coronavírus já se espalhou pelo mundo, tornando-se em uma epidemia que virou uma pandemia.  A primeira morte pela covid-19 registrada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) foi 17 de janeiro.  Levou 59 dias, o equivalente a dois meses, para alcançar 6.000 mortes no dia 16 de março.  Depois, em 41 dias, até 26 de abril, as mortes confirmadas no mundo chegaram a mais de 200 mil, subindo para 6.000 mortes POR DIA.  O que aconteceu e o que podemos esperar e fazer aqui nesta parte da Amazônia?

Para entender o que aconteceu, precisamos entrar numa discussão matemática de crescimento exponencial, algo que sem dúvida, vai ser matéria obrigatória no sistema de educação fundamental, depois desta pandemia.

Exemplo de um resfriado

Vamos imaginar uma aldeia de 100 pessoas, onde uma está com um resfriado severo, que necessita de um período de um dia e exige uma noite de cama no centro de saúde da aldeia.  Vamos agora aplicar o conceito de número básico de reprodução, ou seja, quantas pessoas, em média, ficam infectadas a partir de uma pessoa infectada.   Este valor, tipicamente se chama R0.

Na primeira situação, vamos usar um R0 igual a um (ou em notação matemática, R0=1).  Nesta situação, a pessoa conhecida como paciente zero chegou na aldeia e infectou uma pessoa pela manhã e sentiu mal pela tarde. O paciente zero ficou no centro de saúde à noite e saiu no dia seguinte recuperado e imune ao resfriado.  Aquela segunda pessoa dormiu à noite e na manhã infectou uma terceira pessoa.  À tarde a segunda pessoa passou mal e ficou como paciente no centro de saúde e se recuperou.  Neste caso, podemos ver que vai levar pelo menos 100 dias, mais de três meses, para: a) todos na aldeia ficarem infectados e b) todos passarem uma noite no centro de saúde da Aldeia.  Simplificamos a transmissão um pouco para clarear o conceito. Como o centro de saúde tem três camas e uma equipe de três pessoas, o centro não vai ficar sobrecarregado e a equipe, no mínimo teria duas pessoas, mesmo se um da equipe ficar doente.

Bem, vamos mudar para uma situação onde uma pessoa infectada transmite a doença para duas pessoas ou invés de uma, equivalente a aumentar R0 de 1 para 2, ou seja, R0=2.  Estamos acostumados a pensar em proporções. Vejamos: Se andamos num carro a 10 km por hora para chegar em casa em 10 minutos, gastaríamos somente 5 minutos se adotássemos uma velocidade de 20 km por hora.  Usando este mesmo raciocínio para a situação da aldeia, nós íamos pensar que se R0=2, a doença levaria a metade do tempo, ou seja, 50 dias, mais de um mês e meio para infectar todos os moradores. Porém, não é assim, como podemos ver.

No dia 1, o paciente zero infectou duas pessoas pela manhã (R0=2).  A tarde o paciente zero foi ao centro de saúde e ocupou um dos três leitos.  Naquela noite as duas pessoas infectadas dormiram nas suas casas, mas acordam no dia 2 com dor de garganta e cada pessoa infectou mais duas pessoas, totalizando quatro infectados pela manhã.   Na noite do dia 2, as duas pessoas foram para o centro de saúde e ocuparam dois dos três leitos do centro da saúde e se recuperaram.   No dia 3, os quatro infectados no dia anterior espalharam para oito pessoas no total.   Os quatro passaram mal e foram para o posto de saúde, mas superlotaram o posto que só tinha três leitos disponíveis.    No quarto dia, 16 pessoas estavam infectadas com 8 pessoas procurando os três leitos no centro de saúde.

O crescimento exponencial – o que calculamos com R0 igual a 2 – proporcionou que as 100 pessoas da aldeia fossem infectadas em menos de seis dias e com uma sobrecarga do centro de saúde a partir do terceiro dia. Algo que a comunidade conseguiria lidar com R0 igual a 1 durante três meses, tornou-se fora de controle com uma explosão de casos com R0 igual a 2 depois de apenas 3 dias.

Na vida real, o crescimento exponencial em sistemas naturais chega a um limite e eventualmente pode parar ou ficar negativo, se as pessoas adquirirem imunidade. Por isso, este exemplo é simplificado demais, mas ilustra o desafio para gestão.  Para evitar a sobrecarga do centro de saúde, precisava-se reduzir a transmissão quando somente 2 estavam infectados, ou seja, no segundo dia em que só tinha 1 paciente no centro de saúde.

Para evitar uma epidemia na aldeia seria necessário gastar recursos e isolar as duas pessoas infectadas quando o centro de saúde estava com só um terço dos leitos ocupado.  Se esperassem para o quarto dia, a necessidade de leitos seria igual a sete, ou seja, quatro a mais do que o disponível no centro de saúde.  Logo, não teriam leitos suficientes para todos que precisassem e a situação ia piorar até a onda de infecções começar a regredir.

Pandemia da covid-19

Voltando a situação da pandemia da covid-19, nem todos recuperam e uma porcentagem apreciável morre. Mas será que a pandemia é um problema tão grave? Um dia todo mundo vai morrer e tinha gente morrendo antes da pandemia da covid-19 de velhice, outras doenças, violência doméstica e crime organizado.

Podemos usar alguns números para responder a esta pergunta.  Em 2017, foram registradas 4,61 mortes por 1.000 acreanos no estado do Acre, equivalente a 461 mortas por 100.000.  Para poder comparar com outras áreas, precisamos colocá-las em termos de mortes por 100.000 habitantes por dia, dividindo por 365, ou seja 1,3 mortes por 100.000 por dia.  Este número serve como referência.

A taxa “normal” inclui homicídios.  Em janeiro de 2020, Acre teve uma das maiores taxas de homicídios na sua história, 47 pessoas foram assassinadas no estado. Este número fica em torno de 0,2 mortes por 100.000 por dia, cerca de 15 por cento da taxa normal de mortes. Em outras palavras, uma em sete pessoas mortas foi um homicídio, uma tragédia desnecessária.

Vamos agora ver como estas taxas se comparam às de outros países e cidades atribuídas a COVID-19.  A cidade de Nova Iorque tem uma coleção dados de fácil acesso, fundamental para acompanhar o que está acontecendo.  No período dos 43 dias de 15 de março até 27 de abril, o total foi de 140 mortes por 100.000, ou uma média de 3,2 mortes por 100.000 por dia na cidade.  O pico no dia 7 de abril chegou a 6,6 mortes por 100.000 em um dia. Estas são mortes confirmadas via testes da covid-19 nos hospitais.  Mas pessoas que morreram em casa sem testes e com sintomas relevantes foram cerca de 45% a mais.

Se isto acontecer no Acre nas mesmas proporções e assumindo que só teremos uma onda da pandemia este ano, teríamos 200 mortes confirmadas e prováveis por 100.000, comparado a 461 mortes “normais” por 100.000. Isso aumentaria a mortalidade em mais de 40%.   Seria três vezes maior do que a onda de homicídios que tem feito o Acre um dos piores lugares do mundo em termos de mortes violentas.     Sim, o impacto seria grave.

Mas Nova Iorque é longe. Outros exemplos de cidades mais perto são Manaus no estado do Amazonas e Guayaquil, no Ecuador, ambos dentro de 1.100 quilômetros do Acre.  Os dados oficiais de 246 mortes ligados a covid-19 aconteceram em Manaus, de 13 de março até 26 de abril, ou seja, cerca de 11 mortes por 100.000.   Porém, uma reportagem indicou que só no dia 22 de abril, 80 mortes acima do normal aconteceram na cidade, uma taxa de 3.6 mortes por 100.000 por dia, equivalente à média de Nova Iorque.

Em Guayaquil, com temperaturas similares as do Acre, a pandemia teve um impacto muito severo com uma alta mortalidade não registrada pelos dados oficiais. Usando dados de anos anteriores, na província de Guayas, cuja capital é Guayaquil, jornalistas estimaram 5.700 mortes acima do normal do início de março até meados de abril, o que resulta em um total de 150 mortes por 100.000 e uma taxa média de mais de 3 mortes por 100.000 por dia.

Nestas três cidades valores representativos seria na faixa de 3 a 6 mortes por 100.000 por dia.  Se isto acontecer em Rio Branco, a mortalidade dobraria mais do que o normal durante semanas, impactando o sistema de saúde que já tem dificuldades nas condições atuais.  Estendendo estas taxas para o estado, teríamos 27 a 54 mortes por dia no Acre, só atribuídas à covid-19 durante o período severo da pandemia.

Existem alternativas a este cenário sombrio.  Parece que Buenos Aires, Argentina conseguiu reduzir a taxa, com somente 69 mortes confirmadas em uma cidade de 2,9 milhões de habitantes ou um total de 2,4 mortes por 100.000 até agora e uma taxa de menos de 0,2 mortes por 100.000 por dia. As taxas em Manaus e Nova Iorque foram dez vezes ou mais maiores do que a de Buenos Aires.

Quem agiu rápido poupou vidas

Como se pode ver no início deste artigo, o crescimento exponencial de pandemias significa que ações de controle devem ser implementadas antes que os problemas se manifestem. Para pessoas que não entendem este processo, parece exagero fazer distanciamento social quando os hospitais não têm casos da COVID-19.  Mas foi só assim que a Coreia do Sul, Taiwan, Hong Kong, Singapura, Nova Zelândia, Austrália e Argentina conseguiram evitar os picos que a Itália, Espanha, Bélgica e Nova Iorque sofreram.  Eles conseguiram reduzir o R0 abaixo de 1 antes do colapso de seus sistemas de saúde.

Esta pandemia, de uma maneira genérica, foi prevista há décadas e outras virão.  Precisamos aproveitar esta história para não repetir erros que custam vidas.   Aprender como maximizar as vidas salvas e minimizar os estragos sociais, econômicos e ambientais vai ser o desafio para sociedades ao redor do planeta.  Podemos começar já.

———————

Irving Foster Brown – Pesquisador do Centro de Pesquisa de Woods Hole, Docente de Pós-Graduação e Pesquisador do Parque Zoobotânico da Universidade Federal do Acre (UFAC).

Gerbson Francisco Nogueira Maia – Doutorando da UFAC.

 

 

A Gazeta do Acre: