As sementes crioulas são, por definição, variedades desenvolvidas, adaptadas ou produzidas por agricultores familiares ou camponeses, assentados da reforma agrária, quilombolas, ribeirinhos ou indígenas, com características bem determinadas e reconhecidas pelas respectivas comunidades. Também são conhecidas entre os agricultores por sementes nativas, variedades tradicionais, sementes da paixão, sementes caboclas, sementes da vida ou sementes da solidariedade, dependendo da comunidade ou região onde são cultivadas e preservadas.
No Acre, em particular nas regiões ao longo dos principais rios (Purus, Envira, Tarauacá e Juruá), dentre outros de menores volumes de água, é encontrada uma grande diversidade de sementes crioulas, especialmente de culturas alimentares como milho, arroz e feijão. Essas sementes apresentam características muito peculiares aos anseios e costumes das comunidades e região onde são cultivadas. Com décadas de processo de seleção, passam de geração em geração e são preservadas e multiplicadas até hoje por famílias de agricultores, guardiões ou bancos de sementes.
Diferentemente das sementes utilizadas na agricultura moderna, a semente crioula não passou por nenhuma modificação genética por meio da interferência humana. Isso garante, naturalmente, uma vasta gama de diversidade genética, adaptação ao ambiente de cultivo, além da identidade da cultura de um povo.
Os agricultores familiares são fundamentais no processo de continuidade das sementes crioulas visto que além da preservação também são responsáveis por resgates, multiplicação e replicação de materiais, fatores que facilitam novos plantios e são capazes de promover a independência, segurança e soberania alimentar desses povos.
Em regiões isoladas ou de difícil acesso o cultivo de sementes crioulas é ainda mais necessário. As grandes distâncias e as dificuldades de deslocamento, transporte e acesso ao calendário de plantios são fatores que interferem negativamente na produção de alimentos e justificam o cultivo e intercâmbio dessas sementes entre as comunidades.
Os materiais encontrados no Acre persistem entre os agricultores tradicionais há décadas ou até mesmo séculos, como no caso do milho e do feijão-comum que vieram dos Andes Peruanos. O arroz e o feijão-de-praia foram introduzidos a partir da colonização do Acre, no final do século 19, e têm sido preservados há menos tempo, porém, em conjunto, são de extrema importância para as comunidades rurais em termos de garantia da diversidade genética, adaptação, segurança alimentar e renda para as famílias.
Além desses fatores, as sementes crioulas também possuem sistemas de cultivos locais, como várzeas, barrancos, terra firme, consórcios e semeaduras sobre palhadas, sendo ainda adaptadas ou resistentes a pragas e doenças e aos mais diversos tipos de armazenagem e conservação.
Outra particularidade muito importante são as formas como essas sementes se disseminam entre agricultores e comunidades, podem-se destacar os sistemas de troca, permutas, doações e em casos raros a venda.
Ciente do potencial das sementes crioulas a Embrapa, desde 2017, desenvolve na Terra Indígena Poyanawa um projeto que tem como objetivos resgatar, multiplicar, caracterizar, preservar e replicar o modelo para outras comunidades, a partir de variedades de milho, feijão e arroz já cultivadas pelos Poyanawa. De forma participativa podem-se agregar conhecimentos novos para que a comunidade possa assegurar e preservar essa biodiversidade existente e os agroecossistemas.
A interação entre os saberes tradicionais e científicos permite aprendizados mútuos com ganhos para os dois lados. Para a comunidade, novos conhecimentos sobre como identificar, selecionar, multiplicar, colher, secar, purificar, tratar, armazenar e replicar essas sementes crioulas; e, pelo lado da ciência, a apropriação de conhecimentos sobre as origens desses materiais, preferências, ciclos de cultivo, sistemas de cultivo, hábitos alimentares, formas de consumo, armazenagem e comercialização.
Deve ser identificada e discutida, por exemplo, a ideia de se ter agricultores que possam ser os guardiões dessas sementes, uma vez que já realizam essa prática com eficiência, à sua maneira e nas condições disponíveis, sendo referência para a comunidade. Uma ideia a ser implementada é a “casa das sementes”, um local onde todas as sementes destinadas aos cultivos futuros pudessem ser armazenadas e cuidadas pela comunidade para distribuição entre os agricultores na época do plantio.
Ao final do trabalho é esperado que essas sementes crioulas sejam preservadas e que as populações do futuro também desfrutem dessa diversidade genética e alimentar, que vem sendo mantida com muita dificuldade ao longo de gerações.
* José Tadeu de Souza Marinho é Engenheiro-agrônomo, mestre em Fitotecnia e Pesquisador da Embrapa Acre