O Brasil foi um dos países que mais teve tempo de preparo para o enfrentamento da pandemia de Covid-19 mas passou semanas assistindo inerte a proliferação da doença pelo mundo. Agora, com ao menos 299 mortes no Brasil e quase 8 mil casos confirmados, o governo Bolsonaro busca recuperar a passos lentos o tempo perdido e lançou no último dia 1° de abril um edital para contratação de jovens estudantes de Medicina, Enfermagem, Farmácia e Fisioterapia.
Vista como a mais grave crise já enfrentada em nível global desde a segunda guerra mundial, a atual pandemia requer união de esforços. Sobretudo, a medida adotada pelo Ministério da Saúde não foi bem vista por parte da comunidade médica, acadêmica e outros profissionais de saúde, pois prevê o envio de jovens estudantes para o campo de batalha em uma tentativa clara de exploração de mão de obra barata, visto que há no Brasil milhares de profissionais de saúde em situação de desemprego, a exemplo da área de enfermagem, tida como a maior força de trabalho do setor, cujos profissionais poderiam ser contratados ainda que provisoriamente. Em contraponto a essa realidade, o edital prevê a concessão de bolsas de R$ 522,50 e R$ 1.045,00 para jornadas de 20 horas e 40 horas semanais, respectivamente.
Segundo o médico e vereador doutor Jakson Ramos, a questão não é só financeira, de coerência ou irresponsabilidade, mas “pode ser caracterizada como um crime contra esses jovens que serão expostos a um vírus ainda desconhecido. Nossos jovens profissionais, muitos dos quais mal saíram da adolescência, ainda não estão prontos e serão expostos sem qualquer segurança contratual ou trabalhista e os que não morrerem podem apresentar sequelas pulmonares permanentes como fibrose e insuficiência respiratória para o resto de suas vidas, e depois largados à própria sorte sem qualquer ônus para o Estado brasileiro”, declara.
“Aos acadêmicos é oferecida exposição máxima com proteção jurídica zero no caso de morte ou sequelas permanentes no caso de contágio. Eles não merecem isso, eles não estão prontos pra isso, eles são o futuro da saúde brasileira. Precisamos proteger e cuidar deles para o futuro do Brasil e não enviá-los à linha de frente da guerra para serem abatidos ou mutilados de forma permanente. Não se justifica economizar às custas da exposição de nossos jovens futuros profissionais da saúde, ainda mais oferecendo vantagens e vendendo sonhos que eles sequer poderão ter saúde ou ter vida para usufruir”, acrescenta Ramos.
Para o vereador, é grave a tentativa do governo de minimizar o impacto de seus próprios erros, a exemplo da expulsão de médicos cubanos do Brasil. Os profissionais recebiam do governo a chamada “bolsa-formação” fixada em R$ 11,8 mil, além de uma ajuda de custo inicial de R$ 10 mil a R$ 30 mil para o deslocamento para o município de atuação. Eles contribuíram com um período marcante no Brasil, durante o programa Mais Médicos. Graças ao trabalho desenvolvido por eles, a falta de profissionais brasileiros foi suprida no que diz respeito ao atendimento à população pobre e mais vulnerável.
Foram mais de 60 milhões de brasileiros alcançados, uma parte significativa deste trabalho foi feita pelos mais de 11.000 médicos cubanos, de um total de 18 mil profissionais cadastrados no programa.
“O governo federal quer usar os estudantes como mão de obra barata para economizar e se eximir da responsabilidade de investir dinheiro para resolver o problema. Eles expulsaram cerca de 11 mil médicos cubanos do programa Mais Médicos e agora querem usar o sonho e a inocência dos estudantes para reparar o próprio erro a custo quase zero e vendendo um sonho para expor jovens que nem começaram a viver a um vírus cujas características ninguém conhece”, pondera Ramos.
“Ora, o país tem milhares de enfermeiros, farmacêuticos e fisioterapeutas desempregados Brasil adentro, todos formados e já treinados e prontos para este enfrentamento. Que se contrate esses profissionais mesmo que de forma temporária e com enquadramento em contratos que ofereçam proteção jurídica futura no caso de morte ou sequelas permanentes em caso de contaminação no exercício profissional”, finaliza.
Risco máximo
Conforme cresce o número de casos do novo coronavírus no Brasil e no mundo, aumenta também o receio dos profissionais de saúde no atendimento aos pacientes, pois é máximo o risco de contágio desse grupo. A preocupação não é à toa, pois também é crescente o número de profissionais de saúde contaminados e até mesmo mortos em decorrência da Covid-19.
Na Itália, considerado epicentro da epidemia na Europa, 51 médicos morreram infectados pelo coronavírus desde o início da pandemia. Do total, 25 são médicos de família – o que no país funciona como uma espécie de clínico-geral, que faz a triagem para um especialista.
Na China ao menos seis profissionais da área da saúde morreram e 1.716 foram contaminados pelo novo coronavírus segundo o governo. Já no Brasil, desde fevereiro, 104 profissionais do hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, foram afastados por coronavírus, enquanto no Rio de Janeiro ao menos 100 enfermeiros e 30 médicos estão afastados de suas funções por contágio ou suspeita do novo coronavírus.
A falta de equipamentos adequados é fato no Brasil. No Rio de Janeiro profissionais estão sendo obrigados a se vestirem com sacos de lixo para se protegerem. No Acre, profissionais da área de saúde chegaram a utilizar toucas para cobrir nariz e boca na tentativa de suprir a ausência de máscaras, ambos casos exemplificam o nível de preparação para o enfrentamento da doença no país.
A falta de informações claras a respeito da doença leva muitos jovens a acreditarem que são imunes ao vírus em sua forma mais grave, no entanto, somente em São Paulo 49% dos pacientes internados em estado grave são jovens entre 20 e 39 anos. O motivo para esse percentual se deve segundo médicos a capacidade de recuperação dos jovens, caso recebam o tratamento adequado em unidade de terapia intensiva, o que não acontece com idosos, por isso este último grupo possui maior índice de óbitos.
O acadêmico do sexto ano de medicina da União Educacional do Norte (Uninorte) em Rio Branco, Lucas Teles*, diz que se sente “na ameaça de ser lesado.” “O governo quer mão de obra barata e vai pagar poucos tostões e um bônus de pontuação em provas de residência para que os estudantes arrisquem suas vidas sem proteção apropriada. É lamentável que o governo não tenha se preparado de forma adequada para isso”, opina.
Para ele, o desconhecimento do novo vírus é um dos problemas enfrentados. “Não existe especialista para lidar com isso [novo coronavírus]! Existe quem estuda mais e se dedica ao assunto. Teoricamente os infectologistas são os mais preparados pois dedicam o tempo a tratar tais doenças, porém, devemos lembrar que temos poucos para a situação que se levanta. Muito em breve, eu suponho que para este combate todas as especialidades vão se resumir apenas em ser médico. Não tem como alguém que vai pôr em risco a própria vida fazer planos para o futuro com bonificação de 10% em uma futura prova de residência”, diz.
*Nome fictício para preservar a identidade da fonte