Luísa Karlberg (*)
Língua e cultura são inseparáveis. Todos os dias nossa forma de falar e escrever sofre influência do meio onde vivemosou de cultura superior a nossa. Como a cultura de um povo é dinâmica – com novas tecnologias e conceitos surgindo a todo instante – a língua também está em constante mudança. Muitas das palavras que utilizamos hoje, por exemplo, ainda não estão sequer dicionarizadas. A vida e as necessidades fazem surgir novas palavras. De onde vêm as palavras? O que elas significavam na sua origem e o que significam agora? Que processos influíram nessas variações? No grego, etymos significa verdadeiro e logos, estudo. É verdade que a origem das palavras nem sempre, ou quase nunca, ensina o que elas agora significam. De que forma surgem as palavras? Existem dois processos básicos pelos quais se formam as palavras: a derivação e a composição e, ainda, empréstimos estrangeiros.
A derivação é o processo pelo qual se obtém uma palavra nova, chamada derivada, a partir de outra já existente, chamada primitiva. Observe o quadro abaixo:
Primitiva | Derivada |
mar | marítimo, marinheiro, marujo |
terra | enterrar, terreiro, aterrar |
Observamos que “mar” e “terra” não se formam de nenhuma outra palavra, mas, ao contrário, possibilitam a formação de outras, por meio do acréscimo de um sufixo ou prefixo. Logo, mar e terra são palavras primitivas, e as demais, derivadas.
A diferença entre ambas consiste basicamente em que, no processo de derivação, partimos sempre de um único radical, enquanto no processo de composição sempre haverá mais de um radical.Exemplos: guarda-roupa, pombo-correio, segunda-feira, guarda-roupa, roda-viva. Há dois tipos de composição: aglutinação (aguardente (água + ardente); destarte (desta + arte);dessarte (dessa + arte); embora (em + boa + hora); fidalgo (filho + de + algo); e justaposição ( amor-perfeito; arco-íris; beija-flor). Também temos a composição por justaposição: girassol; madrepérola; malmequer; mandachuva; Ocorre quando um dos radicais, ao se unirem, sofre alteração.
Não esqueçamos que quando um desses processos não atende à necessidade do falante, ele recorre ao que chamamos estrangeirismos, ou empréstimos linguísticos,fenômeno que ocorre em todos os idiomas do mundo. Normalmente se toma o empréstimo de um idioma culturalmente “superior”, no caso o inglês, um idioma universal. O idioma de maior prestígio no mundo.
O queé estrangeirismo?O estrangeirismo é o emprego de palavras, expressões e construções alheias ao idioma, tomadas por empréstimos de outra língua, como ocorre, agora, no Brasil, com a palavra lockdown, do inglês, nascida das palavras “loc” e “doun”. Até 1975, o termo definia o ato de manter prisioneiros em suas celas, mas hoje ele também indica diferentes protocolos de isolamento de pessoas, em diversas situações, para evitar algum perigo ou malefício, como é o caso do covid-19. Há, ainda, outras: Home Office e Live.
Os estrangeirismos podem ser incorporados a nossa língua de duas maneiras – através do aportuguesamento ou da utilização da sua grafia original.Muitas vezes, um termo entra no idioma em sua forma original e, com o tempo, é substituído por sua forma aportuguesada. É o caso, por exemplo, de blecaute, que antes era grafado black-out.Em outras situações, uma palavra pode ter duas grafias – uma original e outra aportuguesada. Um exemplo é estresse, que também pode ser escrita em sua forma inglesa: stress.
Agora temos a palavra inglesalockdown, formada pela união das palavras “loc”e “doun”, que em português se traduz por confinamento, que significa clausura, isolamento, condição em que a pessoa opta por se afastar do convívio social.Lockdown significa, ainda, bloqueio total. Cercar um determinado perímetro, cidade, estado, região, interrompendo suas atividades por determinado período. Ora, se temospalavras, em português que traduzem o Lockdown, por que usá-lo com tanta assiduidade? A mídia já incorporou a palavra ao léxico da língua portuguesa, emborra, no momento, seja um estrangeirismo, um empréstimo linguístico do inglês. Há, ainda, nesse atual contexto, mais dois estrangeirismos bastante usados: Home Office, expressão inglesa que significa “escritório em casa”, na tradução literal para a língua portuguesa. Na concepção de home office, o trabalho profissional é desenvolvido em ambientes diferenciados e que compartilham a infraestrutura do ambiente doméstico – home(lar)+ office(escritório).Acrescente-se, no atual cenário do Brasil, o uso delive, que também vem do inglês, com dois significados e duas pronúncias. O primeirolive é verbo = significa viver; o segundo, significaao vivo. O Facebook liberou, há pouco tempo, para todos os usuários a função LIVE que permite que a pessoa faça vídeos,ao vivo, e publique na sua linha do tempo, a partir de casa. Com isso, as pessoas podem assinar LIVE das pessoas e ser notificado sempre que elas fizerem seus vídeos ao vivo.
Ora, a Inglaterra é uma Monarquia que tem a simpatia do mundo. A Rainha Elizabeth é a majestade no Reino Unido, da Irlanda, Antígua, Barbuda, Austrália, Bahamas, Barbados, Belize, Canadá, Granada, Jamaica, Nova Zelândia, Papua Nova Guiné, Ilhas Salomão, Santa Lúcia, São Cristóvão e Neves, São Vicente e Granadinas, Tuvalu. Por outro lado, os Estados Unidos, também berço da língua inglesa, é uma das maiores potências do mundo. E como sabemos, a tendência dos pobres é imitar os ricos, aí estãoLockdown, Home Office e Live instaladosno cenário brasileiro e, ao que tudo indica, vieram para ficar, ganharam a simpatia da mídia e das redes sociais.
Lembremos, todavia, que os empréstimos linguísticos não empobrecem um idioma, eles, ao contrário, o enriquecem. Com o correr do tempo ou esses empréstimos ganham aportuguesamento ou continuarão a ser escritos e falados da forma como chegaram:Lockdown, Home Office, Live. Mas somente o tempo irá dizer.
Alguns estudiosos, sobretudo os tradicionalistas, veem o estrangeirismo como uma ameaça à língua portuguesa, um patrimônio cultural imaterial do Brasil. Contudo, é preciso cautela antes de afirmar que os empréstimos linguísticos causam prejuízos ao idioma oficial de um país. É absurdo o mito que corre por aí com ares de verdade de que, de repente, substituiremos o português pelo inglês, idioma que mais vocábulos empresta ao português, na atualidade.
O estrangeirismo é um fenômeno social e, para que o leitor entenda melhor o que isso significa, podemos comparar a língua à vestimenta: assim como as roupas, os comportamentos linguísticos da sociedade seguem a moda da época. Se até algum tempo atrás era comum dizer que uma garota era um “broto” e que um garoto era um “pão”, hoje não mais, pois “broto” e “pão” tornaram-se expressões obsoletas, como é obsoleta a expressão calças boca de sino, atualmente chamadas de calças flare, já que estamos falando sobre empréstimos linguísticos. Essa comparação nos diz que interações sociais, econômicas, culturais e políticas refletem de maneira considerável os comportamentos linguísticos, portanto, conclui-se que, diante da tradição, isto é, da língua portuguesa, o estrangeirismo é apenas uma “nuvem passageira”.
LIÇÕES DE GRAMÁTICA
“Haver” e “a ver”
– Outro irmão do mal de “haver” é a expressão “a ver”. Apesar de soarem iguaizinhas, as duas palavras, na realidade, não têm nada em comum: a primeira é um verbo, mas a segunda indica uma afinidade (ou não) entre duas coisas. Confira:
- Quando chove muito, pode haver enchentes na cidade.
- É possível que dois gêmeos sejam bem parecidos ou, pelo contrário, não tenham nada a ver um com o outro.
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(*) Luísa Karlberg
Prof.ª Dr.ª Luísa Galvão Lessa Karlberg.
Pós-Doutorado em Lexicologia e Lexicografia – Université de Montréal – Canadá.
Doutorado em Letras Vernáculas – UFRJ.
Mestrado em Letras – UFF.
Coordenadora Pós-Graduação, Campus Floresta – UFAC.
Presidente da Academia Acreana de Letras – AAL.
Membro da IntertionalWritersandArtistAssociation– IWA.
Embaixadora Internacional da Poesia – CCA .