Foi só tempo do marido desencostar da pia para mudar a música que saía do telefone, para ela derramar duas doses a mais de vodka no suco de tomate. No dele? Não, no dela. O marido andava chatíssimo desde o início do isolamento, desde o início do isolamento nada, desde o fim do ano passado. Foi aumentando o volume da música na hora de lavar os pratos com a passagem das semanas na mesma proporção em que a qualidade das playlists diminuía.
Pelo menos ainda lava pratos, você vão dizer. Ora, façam-me o favor. Em uma casa com três crianças e um cachorro? Era o mínimo. Aquele sim era um especialista em fazer o mínimo. Calcule do fim do ano para cá, vamos dizer, de novembro para cá, o quê? Umas 37 semanas. Era muita música ruim, e muita caixinha de som a plenos pulmões. Aí só triplicando a dose de vodka mesmo. Desde o início do isolamento já foram umas seis garrafas.
Ela ri quando pensa no uso da palavra. Isolamento. Certificado ISO para o lamento. Ainda assim, seguia lhe preparando drinques, lhe lavando as roupas e lhe perguntando sobre o dia. Dificuldade danada de desgostar. Ou de conjugar qualquer verbo que começasse com des: desenganchar, desengasgar, desenraizar. Já para ele, desengonçar era tão natural quanto confundir os copos e fazer menção de levar o dela para a sala. Não, não, o seu é esse aqui.
E esse era só um dos problemas, tinha o chefe. Aquele um chefe que chamou atenção pelo uso exagerado do moletom nas reuniões de departamento. Sinto falta dos brincos e colares das mulheres da equipe, ele disse sexta-feira. Sexta-feira, a mínima bateu os 12 graus, lembra? Ela com um blazer por cima do pijama. Nem pensou em colar nenhum. E explicou melhor: meninas, já que não dá pra ver se vocês estão de salto, é preciso investir em outros acessórios que imprimam um ar de cuidado. “Investir em acessórios que imprimam um ar de cuidado”. Pois deve ter sido isso, o blazer imprimiu moletom na tela. Ou o blazer ou o pijama. Era esse o tipo de coisa que precisava administrar durante os dias de trabalho remoto.
Odiava chefe e equipe remotamente mesmo. Os cachorros nunca comeram tanto. Não, não os cachorros do trabalho, vocês são engraçados, os de quatro patas. Não sei se porque estranharam o povo todo em casa, do nada, passaram a comer enlouquecidamente e vomitar na sala, na cozinha e uma vez até na cama de Guilherme, o filho menor. Dos filhos, vou poupá-los dos comentários: homeschooling, lanchinhos, vai tomar banho, escovar o dente, larga o videogame… vocês sabem.
Pois que virou a vodka de um gole só quando lembrou do pacote completo – marido, chefe, cachorros, filho –, e com o gole, foi tomada por uma coragem, uma vontade de mudança, um agora chega, que nossa senhora! Uma força tão grande, grande o suficiente para mandar o marido embora com a coleira dos cachorros amarrada nos braços, ligar para a mãe e pedir que ela pegasse as crianças pelo menos por uma semana, uma semana não, um mês no mínimo, era valentia que dava e sobrava para enviar aquele e-mail de demissão que morava na caixa de rascunho há mais de um ano. Ela pegou essa coragem com toda a força, fez uma bolinha bem pequenininha e engoliu junto com a neosaldina que certamente vai precisar quando o álcool bater no estômago vazio. São duas horas e ainda vai começar a fazer o almoço. Imprime ISO 2000, não imprime? Boa semana queridos.
* Roberta D’Albuquerque é psicanalista, autora de Quem manda aqui sou eu – Verdades inconfessáveis sobre a maternidade e criadora do portal A Verdade é Que…