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ARTIGO – Racismo: uma triste realidade brasileira

Aos defensores da ideia de que a questão racial e o racismo não são estruturais na sociedade brasileira e, portanto, estranhos à aplicação da lei e do Direito, só tenho a dizer que tal quimera caiu por terra nesta semana. Prova disso, consoante noticiado por vários canais de comunicação, é a fundamentação contida em uma sentença proferida pelo Juízo da 1ª Vara Criminal de Curitiba-PR, por meio da qual a julgadora, ao avaliar ser um réu negro integrante ou não de uma organização criminosa para fins de aplicação da pena, reconheceu-o “seguramente” integrante do grupo criminoso em razão de sua raça.

O termo “raça”, decerto, foi utilizado na sentença pela magistrada na acepção fenotípica de um indivíduo negro ou afrodescendente, por conseguinte, detentor de características que o diferenciava de seus iguais “brancos”. Caso contrário, tal excerto da sentença careceria do silogismo naquela sede expressado.

Não bastasse a gravidade do fato em razão da problemática racista que representa, há muito tempo foram desacreditadas as “teorias biológicas de raça”, dada a diligência da antropologia do século XX em demonstrar a inexistência de determinações biológicas capazes de hierarquizar ou distinguir seres humanos, e a partir da constatação de que não há nada na realidade natural que corresponda ao conceito de raça, consoante elucidativamente abordado por Silvio Almeida, no livro “Racismo estrutural”.

Frise-se. Segundo os mais recentes posicionamentos da ciência, só existe uma raça, a humana, motivo por que as antigas classificações de raça perderam prestígio e estão sendo discretamente suprimidas dos livros escolares, graças às descobertas da paleontologia, da genética e da etnologia, segundo esclarece o Laboratório de Demografia e Estudos Populacionais do Departamento de Geociências da Universidade Federal de Juiz de Fora.

E apesar disso, o encarceramento no Brasil realmente tem cor, de acordo com as informações e dados apresentados em Seminário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), intitulado “Questões Raciais e o Poder Judiciário”, realizado no dia 7 de julho deste ano. De fato, não é de hoje que se tem conhecimento que a população carcerária é majoritariamente negra, tendo o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), ainda em 2017, contabilizado quase 65% dessa particularidade no sistema prisional.

Para o pesquisador Thiago Amparo, “raça, no Brasil, é o principal marcador de diferença nos sistemas coercitivos de aplicação da força e privação da liberdade, permeando as relações jurídicas subjacentes ao Direito Penal e sistemas policiais.” Em relação ao encarceramento propriamente dito, esse pesquisador procura demonstrar, em seu artigo “Notas sobre racismo e justiça”, a seletividade do sistema prisional, em especial no contexto da Lei n. 11.343/2006 (Lei de Drogas) que, desprovida de parâmetros objetivos capazes de diferenciar o usuário do traficante, dá azo à maciça condenação de réus negros por tráfico de entorpecentes.

Em percentual diametralmente oposto, contudo, é a composição da magistratura brasileira. Conforme Perfil Sociodemográfico realizado pelo CNJ em 2018, 80,3% dos seus integrantes se declararam brancos. Talvez por isso, já há algum tempo preocupado com tamanha disparidade, o Conselho Nacional de Justiça havia editado em 2015 a Resolução n. 203, dispondo sobre a reserva aos negros, no âmbito do Poder Judiciário, de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e de ingresso na Magistratura.

Realmente os dados são indiscutíveis e inquietantes. E para fazer um paralelo com o que vem acontecendo nos Estados Unidos, aproveito para trazer à baila o posicionamento da advogada norte-americana Michelle Alexander, exposto no livro “A nova segregação: racismo e encarceramento em massa”, a respeito do tema naquela realidade. Segundo ela, mais que um lugar perpassado pelo racismo, o sistema de justiça criminal estadunidense vem ganhando contornos de centralidade por ser uma readequação de um “sistema racializado de controle social”, fazendo exsurgir naquela prática cotidiana um Direito e um “sistema de castas raciais”, voltados a manter os negros na base da pirâmide social e os brancos no topo.

A par disso, não seria desarrazoado afirmar que o Direito (como as antigas leis racistas e segregacionistas “Jim Crow”) ou o modo de sua aplicação foi e continua a ser usado a serviço do racismo. Como exemplo, cito o preâmbulo da Constituição estadunidense de 1787: “We the People of the United States, in Order to form a more perfect Union, establish Justice, insure domestic Tranquility, provide for the common defence, promote the general Welfare, and secure the Blessings of Liberty to ourselves and our Posterity, do ordain and establish this Constitution for the United States of America”. Malgrado a clareza na sua redação, por séculos foi interpretado exclusivamente em favor dos “brancos” pela própria Suprema Corte americana, com o propósito de assegurar uma longeva escravidão negra, como demonstrado no célebre caso “Dred Scott versus Sandford”, de 1857, que continua sendo um dos casos mais ignóbeis já decididos pela mais alta Corte daquele País.

Explico. Dred Scott, um escravo americano, requereu sua liberdade depois que seu proprietário o levou para viver em território onde a escravidão era proibida nos Estados Unidos, porque localizado ao norte da linha do “Missouri Compromise”, portanto, fazendo jus à emancipação, a teor do que já vinham decidindo algumas Cortes inferiores. Em uma decisão histórica (7-2), o presidente da Suprema Corte, Roger B. Taney, declarou que dito escravo não tinha legitimidade de iniciar uma ação judicial a respeito da questão, porque os membros de sua raça não eram, e nunca poderiam ser, cidadãos dos Estados Unidos; eles não tinham direitos que o homem branco fosse obrigado a respeitar.

Vide o pronunciamento de Taney, em português, quando questionado se os escravos estavam ou não inseridos no “We the People” aos olhos dos pais fundadores dos Estados Unidos da América, nos termos dispostos no preâmbulo da respectiva Carta Magna: “Achamos que não estão, … que não estão incluídos, e não se destinavam a ser incluídos, sob a palavra ‘cidadãos’ na Constituição e, portanto, não podemos reivindicar nenhum dos direitos e privilégios que esse instrumento prevê e garante aos cidadãos dos Estados Unidos. Ao contrário, eram então considerados como uma classe subordinada e inferior de seres que havia sido subjugada pela raça dominante e, emancipados ou não, ainda permaneciam sujeitos à sua autoridade, e não tinham direitos ou privilégios, exceto aqueles que detinham o poder e o governo poderiam decidir concedê-los. Não compete ao tribunal decidir sobre a justiça ou injustiça, a política ou a falta de política dessas leis. A decisão dessa questão cabia ao poder político ou legislativo, àqueles que formaram a soberania e redigiram a Constituição. O dever do tribunal é interpretar o instrumento que eles moldaram com as melhores luzes que pudermos obter sobre o assunto e administrá-lo como o encontramos, de acordo com sua verdadeira intenção e significado quando foi adotado” […].

No Brasil, igualmente, os âmagos escravocratas e a forma de colonização deixaram traços distintivos e profundos nas relações sociais do país, pois calcado em metodologias de exclusão, quanto ao acesso às oportunidades; e de manutenção de privilégios à determinada “categoria” de pessoas. E como nos recorda Gilberto Ávila, em seu artigo “Dados do cárcere: da escravidão às prisões em massa no Acre e no Brasil”, uma nação de excluídos é caracterizada pelo descompasso existente entre pessoas de pele clara, preta ou parda em relação às oportunidades de instrução formal, de postos de trabalho/carreiras e, consequentemente, de rendimentos. Tudo isso aliado à seletividade do sistema prisional vêm resultando em uma população carcerária predominantemente negra, desinstruída e pobre.

E muito embora a resistência contra o racismo encontre cernes mais antigos, foi a experiência política e intelectual dos movimentos sociais do século XX que serviu para inspirar práticas políticas e pedagógicas inovadoras e contestadoras do odioso racismo. Tanto é que nos finais dos anos 1970, a questão do negro acabou por ingressar na pauta da redemocratização do Brasil, fazendo com que a temática negra e africana fosse incluída nos currículos do ensino médio e fundamental das redes pública e privada de ensino.

Quanto ao aspecto de proteção das vítimas, importante é a responsabilidade penal decorrente da incidência no crime de injúria racial e no crime de racismo. A injúria racial, prevista no art. 140, § 3°, do Código Penal, importa em conduta ofensiva da dignidade ou do decoro utilizando elementos de raça, cor, etnia, religião, origem ou condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência. Já o crime de racismo, previsto na Lei n. 7.716/1989, implica em conduta discriminatória dirigida a um determinado grupo ou coletividade e, geralmente, refere-se a crimes mais amplos.

Mesmo assim, políticas públicas e leis que “preconizariam transformações reais num cenário de relações interétnicas crivado por contradições e assimetrias” vêm sofrendo certo processo de erosão por parte de seus aplicadores e por parte de uma sociedade fortemente estratificada e que continua a sustentar a inexistência de discriminação racial no Brasil para efeito de instituir uma “invisibilidade paradigmática do negro”, como incisivamente asserido pelo estudioso Maurício Waldman, no livro “Racismo no Brasil: imaginário e materialidade da discriminação”.

Com efeito, enquanto as normas “antirracistas” parecem padecer de algum desgaste, no outro lado da moeda ainda é constatável a alegórica regra informal de conduta, em determinados condomínios residenciais, que continua a impedir o uso do elevador social por negros, pobres e mal vestidos. Daí a necessidade, segundo Waldman, de “diuturnamente retomar e enfatizar a importância deste debate, impregnado de uma resiliência que ultrapassando os marcos do imaginário, contagia integralmente o edifício material da sociedade brasileira”.

E por mais estupefacta que seja a sentença racista que deu ensejo a esta tentativa de reflexão, não mais se admite a ingenuidade de crer que isso é uma absoluta exceção. Pelo contrário, a única novidade que oferece é a sua explicita redação, por sinal, impassível de ser retirada de um contexto maior, como alegado pela magistrada em um singelo pedido de desculpas.

Infelizmente, em vista do que se descortina na realidade social, são sérias as possibilidades de o preconceito racial no Brasil perdurar por longo tempo, a não ser que mentalidades e atitudes concretas sigam em direção oposta a esta fatídica predição.

 

(*) Ana Lemos Lovisaro é advogada e doutoranda na Università di Roma “Tor Vergata”

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