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ARTIGO – As curvas da estrada de Santos

Quando se viu no reflexo da janela da sala, com um cabo de vassoura nos ombros, um amaciante em cada uma das pontas, o cabelo tão desgrenhado quando se pode estar, 8, 9, 10, dito bem alto pra ver se o obebê no cadeirão entendia que faltava pouco, chorou alto. De soluçar. Que ridículo. Tornou-se uma mulher de roupas de ginástica. Nunca nem gostou de ginástica.

A professora, meio brasileira meio francesa, do outro lado da tela do celular – em uma dessas casas de janela do piso ao teto, janela nada, varanda que não acabava mais, inteiras de madeira e vazios que comportam móveis assinados, vista infinita para a praia – nunca deve ter usado esse amaciante pra outra coisa senão fazer de conta que alcançou o que estava à mão para criar um treino possível para todos. Todos quem? Juntas somos mais fortes, força, foco e fé! Juntas eu aqui na república e tu aí no litoral? Eu short sem elástico, desbeiçado e tu track and field, no mínimo, da cabeça aos pés?

Chorou e seguiu fazendo os agachamentos que pareciam tão mais eficientes na Rê. Era Rê a moça, cobrava só R$100 mensais, porque todo mundo tem que se ajudar em um momento como esses, né? Personal de pouquíssimos horários abertos na agenda. Que fofa. Mesmo. Tava bem pago. Cenzinho de cada um dos trezentos e oitenta e nove mil inscritos, uma corrente de saúde. Já pensou? Nem soube fazer a conta. Na cabeça, não tinha espaço pra acrescentar um zero a número nenhum.

Pudera, zero ajuda em casa, zero e-mail chamando para trabalhar, zero perspectiva de futuro. Que o futuro fosse com o glúteo um pouquinho melhor, pelo menos. Pois que desde março, tem Rê todo santo dia. E tem o café do pequeno, a ginástica, limpar o terreno do cadeirão quando acaba o alongamento, o café do maior, o lanche do pequeno, o sai do celular, menino, de 15 em 15 minutos, o almoço, dos 3, a aula online, as roupas, os pratos, a vassoura e o mop, mais lanche, o jantar, a lição, o sai do celular, menino até de noite. E aí o whatsapp com as amigas, porque há de se fazer presente para ser lembrado. Tô indo de autocuidado também amiga, malho todo santo dia. Ah, trabalho? Tenho pegado mais leve, sabe? Mas, estamos aí se precisar de alguma ajuda.

Chorou porque quando quer jogar tudo para o alto, grita – no banho pra ninguém acordar, já que banho, só depois da meia noite: um dia ainda fujo pra França. Mas hoje, leu que a frança fecha essa semana em lockdown de novo. E quando dá tudo errado na França é que a coisa ficou feia mesmo.

Pois que enquanto ouvia a Rê se despedir e mostrar a vista da janela/varanda para o textinho motivacional do alongamento, deu conta de uma mini baratinha no canto do sofá de 15 lugares. Uma dessas baratinhas teimosas, que não morrem nem com a dedetização luxo, sem cheiro que a moça anunciou esses dias, na ubli, ubli, ubli, vamos para hora do publi – juro que tem isso. Aí o choro virou gargalhada, das grandes, de soluçar. E ela pegou o pequeno e o menino maior pelo braço, com celular, short sem elástico, máscara e tudo, e dirigiu até a praia cantando alto na estrada. Foi aí que teve a ideia…


(*) Roberta D’Albuquerque é psicanalista, autora de Quem manda aqui sou eu – Verdades inconfessáveis sobre a maternidade e criadora do portal A Verdade é Que…

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