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ARTIGO – Morde assopra

Lembrou de manhã, logo cedo, que exatamente hoje completava sete meses no emprego novo. E por novo, entenda, no primeiro. A vontade sempre fora de trabalhar fora, ter seu próprio dinheiro. Deixar de tem que. Odiava ser criança e depender financeiramente do pai desde, sei lá, desde que se lembra. Enquanto morar embaixo do meu teto, tem que fazer como eu mandar. E tentou bastante até. Estava escrito no caderno com capa do One Direction, a entrevista no Bompreço foi a de número 47. Nunca passou da primeira entrevista.

É que quando Joana ficava angustiada, ansiosa com alguma coisa que queria ou que não queria muito, mordia a bochecha por dentro com tanta força e tanta velocidade, que não havia a menor possibilidade de o entrevistador, ou quem quer que estivesse diante dela, deixar de sentir a mesma agonia. Se não o dobro da agonia. Era meio desesperador pra falar a verdade. Só quem não desesperava era o pai. Um enquanto morar embaixo do meu teto pra cada mordida.

Chegou, como costumava chegar, com pelo menos 15 minutos de antecedência, vestindo o melhor jeans –  e por melhor, entenda, o único – a sapatilha de verniz que herdou da mãe, camiseta branca e o blazer que a vizinha já emprestava há pelo menos umas 10 entrevistas. Quando a moça do rh disse que, o resultado sai ainda essa semana, entramos em contato, ela quase perdeu o ar. Conseguiu, no meio de uma pandemia. E tem mais, disse com a cara mais tranquila do mundo, não se abalou nem quando a primeira gotinha de sangue escorreu pela boca mordida de uma Joana incrédula.

Atravessou a Conde da Boa Vista com o sorriso melado de orelha a orelha, ouvindo na cabeça a voz do pai. Você passa por louca com essa mania ridícula. Nunca ninguém vai te dar crédito. Pois deram. Deram e deram bem dado. Não tinham do que se arrepender. A menina conhecia os códigos de todas as frutas de cór. Pera, bahia, lima, seleta, barão, Itália, Thompson, Crimson, Rubi, Benitaka e Niagara Rosada, reconhecia já no carrinho de quem ainda estava na fila. Bom dia dona Clara, dona Sara, dona Mara. Boa tarde, boa noite, que bom que a senhora se recuperou. E não vai levar seu pãozinho hoje não? Cpf na nota? Débito ou crédito? Não havia outra operadora de caixa tão empenhada quanto ela.

Era exatamente essa a importância desta segunda-feira. Primeiro dia útil. Dia de fotografar o funcionário do mês. Carla em abril, Luiz Guilherme em maio, Kelly em junho, julho deu Luiz de novo, Maciel em agosto, Gabi em setembro, e Samuel outubro. Do primeiro segundo em que o gerente pronunciou as cinco letrinhas no microfone convocando a funcionária do mês para a sala do rh, onde as fotos seriam feitas, Joana já deu a primeira mordidinha. Andou dos caixas até a esteira rolante, 78 passos, os dentes já a todo vapor, cada passo um aperto maior. Fotógrafo com cara de pressa abre a porta e já vai dando a ordem: pronto, querida, pode tirar a máscara.


(*) Roberta D’Albuquerque é psicanalista, autora de Quem manda aqui sou eu – Verdades inconfessáveis sobre a maternidade e criadora do portal A Verdade é Que…

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