Marcamos às 8h. Em ponto, ela disse antes de desligar o telefone. A confirmação do horário, uma pausa pequena e a ameaça do “em ponto”. Isso desde 2000, quando passei a frequentar a mesma casinha branca e azul da Ferreira de Araújo. Primeiro porque ficava tão pertinho do trabalho e, de certa forma, da minha casa também. De casa, pertinho, assim, de ir a pé. Mas de chegar suada se fosse verão e com a garganta arranhando se tivesse frio. Do trabalho, era mesmo do lado.
Naquela época, marcávamos às 12h30. Eu aproveitava o almoço pra fazer de um tudo, doida pra me livrar do escritório. Durante mais de um ano, embora não tivesse interesse algum por linhas e agulhas, fiz um curso de costura na singer do Largo da Batata, toda terça e quinta. Era maravilhoso. Só tocava rádio AM e não havia uma única colega menor de 60 anos. Fiz pilates, natação, inglês, musculação. Qualquer coisa que coubesse das 12h30 atè as 13h30. Comia em meia hora e voltava para o computador, jurando que era dona do meu tempo. Tadinha.
Segundo porque embora houvesse o barulho do motorzinho, ela nunca, nunquinha passava do “e como estão as coisas com você?”. Eu já de boca aberta, fazia um legal, fechava o olho e deixava motor, epelhinho, sugador e qualquer outra coisa necessária à tarefa, agir sem interrupção. Um hora deitada, em silêncio, demanda zero, olhos fechados no meio do expediente. Era perfeito.
Até que ela engravidou e resolveu fazer uma pausa para cuidar do bebê. Do meu lado, saí do trabalho, mudei e perdi o plano de saúde odontológico. Era o fim. Ponto. E eu procurei outros dentistas aqui perto, dos que não precisava nem suar para chegar ao consultório. Mas eles atrasavam, falavam horrores, teve uma que me pediu pra segurar o sugador, como assim? E a real é que nenhum deles era a dra Débora.
Voltei faz uns três anos. E, embora agora não haja mais nem sombra de silêncio, ela me conte cada detalhe da escola, da tarefa, das gracinhas, das descobertas do Leo, que já nem é um bebezinho, não mudo de dentista nem a pau. Semana passada, quando desmarcamos de novo nosso encontro – os números de infectados e mortos voltaram a subir bastante por aqui – às 8h, vocês sabem, em ponto, pensei nessas relações que vamos construindo com o tempo. Pode parecer que são os muito próximos que nos nutrem, mas é também delas que somos formados. Me preocupei com a dra Débora quando a pandemia começou, pensei no Leo, que ano passado estava gostando tanto da professora nova, lembrei também da Tati, com quem eu pintava as unhas às sextas-feiras, do coordenador da escola das meninas que estava tão empolgado com os eventos do fim do ensino fundamental, do porteiro da noite do consultório que sempre me falava sobre as suas leituras, do povo do trabalho antigo que já não vejo há tanto tempo. E minhas colegas de costura, como será que estão? É de falta de gente que estamos sofrendo, não é? Que duro. Boa semana queridos.