O interfone tocou, mas nem precisava. Ela já estava acompanhando o aplicativo desde o ‘confirmar a sua compra’. A agonia era tamanha que não calculou a necessidade de atender ao chamado. O elevador já ia quase no térreo e ainda ouvia o som estridente que enchia o apartamento. Faz-se urgente um ajuste neste interfone, pensou sobre o escândalo.
No térreo, espremida pela máscara que lhe derrubava o último suspiro de juventude do rosto, tentou abrir a porta do elevador com força, mesmo antes de ele ter de fato estacionado. Sentiu o solavanco da madeira e, como num movimento de disfarce para si, ou para o espelho, acomodou as cinco camadas de tecido. Com a mesma mão que chamou o elevador, apertou o botão do ‘T’ e, espalmada, empurrou a porta ainda imóvel. Nem se deu conta.
Quando finalmente saiu da caixa de madeira, viu o vizinho. Desde que se mudou, não houve uma única vez – entrando ou saindo do prédio – que não tenha cruzado com esse cara sentado na mesinha verde do jardim. Sentado nas cadeiras que acompanham a mesinha, claro. Mas esparramado sobre ela, os dois cotovelos, quase que a barriga, enquanto fumava daquele jeito feio. Um fumar meio cuspido. Sempre sem máscara, mesmo depois que o cigarro acabava, mesmo antes de começá-lo. Sempre com um olhar de desconfiança que, nela, provocava um desconforto para o qual não conseguia nem dar nome.
Segurou a porta em uma atitude, que, por alguma razão, não lhe caia bem. Ela agradeceu, e segurou de volta para a vizinha do 21 passar. A mão cada vez mais pesada, pesada de vírus. De novo, não se deu conta.
Atravessou a porta e desceu as escadas num instinto meio selvagem, de um corpo que já não precisa olhar o caminho que faz. Quatro degraus e nove passos até o portão. Do outro lado do portão, Douglas. Os dois, de um jeito quase estranho, se sentiam íntimos. Mantiveram diálogo profundo, embora curto, no chat do aplicativo nos últimos minutos.
Ela pediu vinho, tomate, pão italiano e o queijo preferido de Daniel. Daniel vinha ‘jogar conversa fora’, foi o que disse ao telefone. “Chego em uma horinha, pode ser?” Poder é pouco, ele tinha que vir. O encontro estava combinado há uma semana. Escreveu às 21h do sábado, como se nada fosse. Ela já tinha dado o compromisso por perdido, por isso a entrega de emergência.
Fez todo o esforço que pode para lembrar o nome do vinho. Da última vez Daniel disse que amava esse, e ela comentou que era também seu habitual. Mentira. Lembrou, fez o pedido. Douglas não achou. Nem o vinho, nem o queijo. Ela pediu que chamasse alguém da loja, nada. Ele fotografou um tanto de rótulos, “dá uma olhada nessas opções”. Os dois a pleno vapor quando Daniel mandou a mensagem cancelando, esqueceu do jogo amanhã, “e eu tenho que estar disposto, tu sabe, é a final, né?”.
“Tu acredita nisso, Douglas?”
“Então me conta você, qual é o seu vinho predileto? Ou melhor, você gosta de vinho? Queres mesmo esse queijo? Bora fazer teu sábado funcionar. Esse cara é um babaca.” Escolheram juntos: um chocolate, um pão de forma, requeijão e atemoia, um café e um leite, “integral, que tu tá merecendo”. Douglas ganhou cinco estrelas e nove números anotados na nota de compras. Mereceu.
(*) Roberta D’Albuquerque é psicanalista, autora de Quem manda aqui sou eu – Verdades inconfessáveis sobre a maternidade e criadora do portal A Verdade é Que…