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Opinião: Cocada não tão doce

Você começa a sentir uma dorzinha de dente. Finge que não entendeu. Espera um dia ou dois. Piora. Vai na farmácia atrás de uma dessas pastas escolhidas por nove entre dez dentistas. O dente ignora a pasta. Você dá a mão àquele um dentista que sobrou. E aí entende que o negócio deve ser mais sério do que uma sensibilidade.

Você que sempre achou graça da expressão dentes sensíveis não está rindo agora. Manda mensagem para o consultório da Dra Débora. Quando a Paty – com Y – pergunta se ainda tem Odontoprev, você fica verdadeiramente sensível. Quarta às 11h? Posso. Era sexta. Na quarta, chama um táxi. São 10h50 e você ainda está na Cardeal, vê que a Coco Cravo e Canela fechou. Sete placas de aluga-se na casa azul responsável pelo buchinho que cultiva desde que chegou em São Paulo. Pode até sentir o gosto da cocada enquanto digita o aviso de atraso no whatsapp do consultório. A foto do contato é um dente de máscara. Você, tonta e triste – e não é de agora.

Viram na Cunha Gago, e aquele português também não resistiu. Lopes, Coelho da Fonseca e Pacheco alugam. Você chega às 11h05. Dra Débora pontua o atraso. Você sorri, mas como o dente do whatsapp, está de máscara. Senta na cadeira, babador e guardanapo. Ela te enfia um sugador na boca e engata o monólogo. A escola do Leo voltou semi-presencial, pudera, essas crianças já perderam muito conteúdo. Você lembra que o menino dela deve ter uns quatro anos, no máximo. O marido isso e aquilo, o Brasil, a pandemia, que loucura, né? Os protocolos, a Pfizer, a AstraZeneca.  Paty, confirma a dona Elizete hoje à tarde, a plaquinha dela ficou pronta? E você? Como estão as filhas? No fundamental já? E a revista? E seu marido, um fofo, né? Você saiu da revista há anos, as meninas já vão no ensino médio, separou. Mas tanto faz, você não consegue responder, nem ela está interessada na resposta.

O barulho do motor segue, ela vai de anestesia e você entende que ali, morrem, no mínimo, uns R$500. Cospe, abre, tá doendo? Você está torta e doída, fazendo o pix – foram R$750 – quando ela pergunta se te contou que já está acabando a rádio, a cirurgia deu certo, ainda bem que fiz os exames mesmo com a pandemia. Você chora no táxi de volta, pelo dono da doceria, o do portugês, o fim do casamento – ele não foi fofo, o Leo, as meninas e o câncer da Dra Débora.

(*) Roberta D’Albuquerque é psicanalista, autora de Quem manda aqui sou eu – Verdades inconfessáveis sobre a maternidade e criadora do portal A Verdade é Que…

 

A Gazeta do Acre: