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Opinião: Do colégio pra praia

“Como calma? Quem não tá entendendo sou eu.” Michele já não suportava a leveza de Daniel. E foi exatamente essa leveza sem lugar que fez o relacionamento descambar ainda nos primeiros meses da pandemia. Ela e o “e a minha saúde mental?”, estandarte que abria espaço para toda e qualquer concessão e que, claro, respeitava somente o desejo dele; a insistência nos “encontros seguros” com a galera da praia, a ética elástica do ‘o que funciona para o outro não é igual ao que funciona pra mim’, isso tudo já desde março de 2020. Um Daniel surpreendente que, confrontado com o chamado para o real, estragou-se.

Estragado como a esperança que ela perdera de voltar a viver fora do apartamento. À medida que os meses passavam, ela abandonava o que antes parecia obrigatório. Parou de fazer os abdominais, parou de correr, abriu mão dos creminhos todos, deixou o cabelo voltar à cor original. Mas isso não foi o pior, ao contrário, pôs Michele livre de exigências que nem dela eram. A rotina que ela chamava de cuidados mas que, no fundo, era de cobrança, ficou para trás.

O problema foi que com abdominais, corridas e tintas de cabelo, pouco a pouco, foi abandonando os telefonemas para os amigos, as entregas do trabalho, os almoços de comer com garfo e faca, as faxinas de água e sabão. Foi esquecendo os aniversários, os exames do ano, o fio dental, as verduras e as outras fibras. Michele, acumuladora de não feitos e por fazeres.

Era como num daqueles filmes em que o mundo acabou e o herói desavisado segue lutando pra salvar uma humanidade que nem existe mais. Michele não reconhecia como humanidade os que se aglomeravam por gosto, e também não se identificava – embora os admirasse – com os que continuavam seguindo firmes ´apesar de você´. Como naqueles filmes só que na direção oposta.

No fundo, se deixou desviver aos pouquinhos. Perdeu a vaga de gerente que conquistou com um custo que só ela sabe, os amigos e a força, cortou o contato com a mãe que, como Daniel, não fez fotografia justa dos acontecimentos, deixou crescer a raiva dos que aceitaram ver os números subirem, as vacinas, a comida e mesmo o ar faltarem. Como ela, havia outros muitos. Ainda assim, estava só.

E agora com esse cara em sua cama. “Michele, só perguntei em quem você vai, amor. Calma. Eu não vou no louco, mas o outro também não dá. Vou nulo, só isso. Que 2021, amor? Foi o vinho de ontem, tu tá sonhando. É outubro de 2018. A gente vai do colégio direto pra praia. Tá tudo bem”. Acordou suada e sem fôlego. Que pesadelo.

(*) Roberta D’Albuquerque é psicanalista, autora de Quem manda aqui sou eu – Verdades inconfessáveis sobre a maternidade e criadora do portal A Verdade é Que…

 

 

 

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