Podia descrever o desenho dos dentes de qualquer um, da moça do caixa do super de ontem à tarde, por exemplo. Sim, um talento inútil, já que não era ortodontista e nem odontóloga. Os dentistas de hoje atendem por odontólogos, sabia? Ela prefere dentista, mas é dada a respeitar escolhas. Ainda assim, era um talento do qual se orgulhava. E se tinha a oportunidade de olhar com cuidado para uma boca, se, ainda melhor, pudesse observá-la de mais de um ângulo, por mais de alguns segundos, paquerava cada dentinho, cada encontro entre dentinhos, o encaixe entre a arcada superior e a inferior e, especialmente a dancinha que se dá entre um canino e o outro.
Só de pronunciar ´canino´ já se alegrava feito criança pequena que perde a hora do dentista. Opa, desculpa, odontólogo. Pois que a tal dancinha particular entre um canino e outro, passando pelos incisivos laterais e centrais, especialmente da arcada superior, eram de um encanto, que nossa senhora.
É óbvio, mas quero contar, posso? É que desde miúda vive de ortodontista em ortodontista. Começou ainda nos dentes de leite com o diagnóstico de prognata e passou pelo extra oral, o aparelho de tração reversa – dá um google, punk – os fixos e os móveis. Arrancaram dente de verdade, enfiaram dente de mentira e toda aquela via crucis dos filmes de patinho feio. Só que sem o final borboleta, porque até hoje segue com um aparelho de contenção na arcada inferior. Se tirar, desanda. Ou pior, anda, cada dente para um lado, um desgoverno.
Do tema dentição, guarda somente duas boas memórias. A primeira é do dr. Luiz Garcia, de Caruaru. No consultório dele – e na sala de espera – só tocava uma única música. Era um registro em fita K7 de um show de Jorge de Altinho – pode dar google também. Lá pelas tantas ele solta um “quero mandar um abraço para meu amigo Luiz Garcia”. Vez por outra, perguntava no meio do atendimento: ouviu? A outra é dele também. Em dias de ajuste intenso do aparelho, ele dava pra menina um anelzinho de metal com um braquete no meio. Uma joia de pessoa.
Tudo isso pra dizer que, ontem, pode estudar com calma, muita calma, uns dentinhos lindos de tudo. Da primeira vez que esteve diante deles, desconcentrou-se por dificuldade de manter os olhos abertos. Segundo e terceiro molar lhe escaparam no tamanho e no encaixe. Mas ontem, ah ontem, registrou cada curvinha, cada altura, direção e posicionamento. No alívio do registro feito, chegou em casa, pegou no sono, dormiu um pouco e sonhou muito. Desenhado está.
(*) Roberta D’Albuquerque é psicanalista, autora de Quem manda aqui sou eu – Verdades inconfessáveis sobre a maternidade e criadora do portal A Verdade é Que…