Desde a semana passada, a vida tem sido barulhenta por aqui. No primeiro dia, cogitei reforma na rua lateral que está há uma casa e um prédio do edifício onde moro. No segundo, tive quase certeza de que era no meu prédio mesmo, tamanho o volume do quebra-quebra. No terceiro, saí na varanda entre um paciente e outro para entender o que, de fato, estava acontecendo.
Dividimos o muro com um casarão que costumava ser um buffet, desses para casamentos pomposos e festas de longo e salto alto. Desde que mudamos, em 2020, o buffet segue fechado. Em uma ou outra noite de sexta e sábado, senti pelo silêncio do lugar. Um alívio culpado misturado com pena. Difícil até imaginar a vida de quem trabalha com eventos nesse último ano e meio de pandemia.
É essa a casa que estão agora derrubando. Sr. Gilberto, zelador aqui do prédio, me disse que “vão subir um sacolão. Já pensou que prático pra gente?”. Já. Vai ser delícia mesmo, fazer a feira assim, quase sem sair do prédio. E tomara que não seja caro como o mercado do outro lado da rua.
O buffet era antiquíssimo. Fico aqui, olhando para a casa vazia de sentido e fantasiando que voltaremos a ter razões e meios para celebrar a vida. Mas a imagem das marretinhas nas mãos dos moços que ocuparam o telhado do lugar, derrubando tijolo por tijolo, não me sai da cabeça. Os moços não me saem da cabeça. Nem que eu quisesse. Tijolos quebrados fazem muito barulho.
Tive uma professora que trabalhou ali. Chamava-se Buffet França e estava aberto desde 1970. Na altura em que deu expediente no lugar, estudava psicologia. Disse que engordou horrores. Tinha poucos recursos e almoçava e jantava comida de festa que levava para a república em potinhos de plástico ao fim de cada madrugada. Terminados os cinco anos de faculdade, que pagou com o salário de garçonete, ganhou dos colegas de buffet os 24 volumes da obra completa de Freud. Acho tão bonita essa história. Bonita e triste.
Ao fim da história, que ouvi para mais de quatro vezes, ela lembrava que não pode participar da própria formatura, comemorada em um buffet bem mais modesto. Esteve em grandes festas, conheceu a fartura, comeu muito bacalhau, camarão, queijos importados e carne de primeiríssima. Mas comeu o que sobrou. Ela dizia que no cardápio da formatura da turma o prato principal era massa ou fricassé de frango. E frisava: nunca servi no França. Ainda assim, não pude pagar.
Os moços do telhado não frequentarão o sacolão que agora constroem. Arrisco dizer que o Sr. Gilberto também não. Prático? Delícia? Fartura? Pra quem?
Roberta D´Albuquerque é psicanalista, autora de Quem manda aqui sou eu e escreve semanalmente para A Gazeta do Acre e outros 17 veículos no Brasil, Estados Unidos e Canadá.