Verão de 1982. Um Del Rey vermelho estaciona embaixo de uma das muitas árvores da fazenda esperança, em Gravatá. Dele, saem um casal de trinta e poucos anos e duas crianças pequenas. Uma no colo da mãe e a outra rapidamente posta no colo de uma tia que os aguardava, antes mesmo de encostar os pezinhos no chão de terra. Ambas têm a cabeça baixa, abrigada no pescoço do adulto que as leva. Estão envergonhadas.
Chegaram de Garanhuns, onde moravam. De todos os 13 irmãos, ela (a mãe das meninas) era a única que resolvera sair da cidade natal. A festa na fazenda já estava há muito começada. E essa não era cena incomum. Sendo, os quatro, os de fora, costumavam chegar depois e sair antes de grande parte dos eventos da família.
O pai saiu do carro sem crianças. Ele também trazia certa timidez no olhar. Já no terraço, todos devidamente instalados, a mãe brinca com uma câmera fotográfica, ri largo, abraça um irmão com força, taca-lhe um beijo. Uma mulher radiante que está à vontade entre os seus. Ele, o pai, tem um copo (cerveja?) na mão e mastiga lindamente o que devia ser resultado de um churrasco. Um mastigar cheio de charme. A câmera abre o corte e se vê que veste uma camiseta da tríplice fronteira, decerto um suvenir de viagem. Ele é magro, barba preta e cabelos que já dão algum sinal de queda futura. Engole o que estava na boca, dá mais um gole e sorri para a câmera. Está nítida a certeza de si. É lindo.
Uma das muitas tias puxa a criança menor pelo braço. A menina de quatro anos vira a cabecinha que estava escondida quase até agora e encara a câmera. Encara com força, olha bem pra dentro da lente e, por um segundo, está ali o mesmo olhar do pai.
Passei o domingo presa neste olhar.
No dia anterior, conversava – o que tinha tudo pra ser um oizinho tranquilo de sábado – com minha mãe, quando ela desatou numa história dura do passado que eu não conhecia. Nela, os personagens eram os mesmos quatro do Del Rey. Mas o clima era bem outro. A lindeza de meu pai não condizia com o roteiro que me relatou.
Como eu disse na semana passada, não somos homogêneos, uma coisa só. Somos muitos. Amo meu pai pelo que ele é. Mas também consigo seguir o amando apesar do que é. Herdei dele o gosto por mastigar cada pedacinho da vida, herdei essa certeza (que não passa de desejo) de saber de mim, herdei a timidez de mentira, e a de verdade. E não tenho dúvidas de que tenho comigo também alguns dos pedaços dele que me espantam. Sigo sendo a menina do vídeo, ainda com esperanças, mas, há muito, de cabeça alta e sem ilusões de reis. Espero que tenham tido um bom dia dos pais. Beijo grande e boa semana.
Roberta D´Albuquerque é psicanalista, autora de Quem manda aqui sou eu e escreve semanalmente para A Gazeta e outros 17 veículos no Brasil, Estados Unidos e Canadá.