Passei o último fim de semana em ótima companhia. No sábado, estive com Betty Milan e Lacan, a partir do livro que ela escreveu sobre/para/com ele acerca das experiências que construíram juntos em análise (Lacan ainda: testemunho de uma análise, Zahar, 2021). Que generosa a ideia de compartilhar trechos de um processo tão íntimo e transformador.
Milan não limita a sua generosidade somente ao conteúdo – e aqui, faço uso injusto das duas palavras: limita e somente. Por que o tal conteúdo de limitado, e de somente não tem nada -, mas a entrega também na forma. A leitura surpreende de tão fluida. Quando cheguei ao fim do livro, tomei até um susto; já?!.
Para mim, foi uma experiência, além de prazerosa, reveladora. Sempre guardei alguma restrição a ele, Lacan. Desgostosa por não conseguir navegar na calmaria pelos textos que não cansavam de me afetar – para fugir de minha mão no próximo segundo. Um atravessamento desmemoriado, ou melhor, desentendido. “Por que ele faz isso?”, me perguntava. Que gosto é esse por não se fazer entender? É tão bonito quem abre mão do mar revolto, do número reduzido de interlocutores e transforma o complexo em possível. Quem opta por alcançar de primeira um tanto de gente, quem não divide a platéia entre “os seus” e os outros.
Pois sim, sigo admirando quem o faz, como Milan. Mas é justamente esse “de primeira” que Lacan põe em discussão. Ele confia no tempo de quem o escuta – no presente mesmo, porque o que disse segue reverberando em tantos. Aposta na possibilidade de se sustentar um não saber. O conceito está lá, por toda a sua obra. Embora eu tenha estado em contato com ele inúmeras vezes, foi na voz (na escrita) de Milan que pude compreender quão generosa é essa confiança. A posteriori.
No domingo, estive com Marçal Aquino e o seu Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios (Companhia das Letras, 2005). Um livro que não precisava nem ter texto, tamanha a beleza do título, mas tem, ô se tem. Sigo ainda na metade, depois conto mais. Mas fiquei com vontade de dividir só uma coisinha com vocês. Chovia no livro. E chovia tão bem chovido, tão bem contado, que quando tocou o interfone e eu precisei interromper a leitura para encontrar quem me esperava no térreo, levei comigo o guarda-chuva.
Há um tanto de gente (pensadores, autores, os nossos e os outros) tocando a campainha, esperando na porta, apostando que, uma hora ou outra, a gente abra. Mas não é só abrir. É abrir e deixar entrar. Será que a generosidade não precisa ser também nossa? Tu casa, mi casa? Boa semana queridos.
Roberta D´Albuquerque é psicanalista, autora de Quem manda aqui sou eu e escreve semanalmente para A Gazeta e outros 17 veículos no Brasil, Estados Unidos e Canadá.