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Nus com nossos medos

Encontrei ontem um amigo que já não via desde abril. Estávamos os dois visivelmente contentes pela possibilidade de encaixe de agendas quando marcamos, ontem mesmo, o horário. Vínhamos tentando há um tempo. “Eita, tomei a vacina hoje, estou meio molinha”. “Droga, tenho uma reunião marcada”. “Estou com as crianças a semana inteira.” Desde abril.

 

Pois que ontem, tanto para mim, quanto para ele, não havia nenhuma restrição. Alegria mútua.  E nos vimos cheios de assunto a pôr em dia. O amigo? É alguém a quem tenho grande admiração por sua maneira livre de ver o mundo. Mais ainda, por sua maneira livre e corajosa de viver o mundo. Porque para ser, de verdade verdadeira, livre, há de ter muita coragem.

 

Ele me disse dos planos para o futuro, de sua clínica, de sua escuta, das teorias que vem desenhando na cabeça. Me ouviu, com a mesma dedicação com que falou de si, passear por um tanto de temas. Voltamos ao passado longínquo de madrugadas de trabalho que compartilhamos. “Lembra disso? Lembra daquilo?”

 

A semana inteira foi de frio intenso aqui em São Paulo. Nós tomávamos vinho tinto, estávamos cada um enrolado em uma mantinha, casacos, meias. Mas a uma certa altura da noite, senti meu corpo inteiro tremer em um desconforto gelado. Tensionei os ombros, cheguei a imaginar não ser capaz de suportar a dureza do tempo. No labirinto que configura minha cabecinha neurótica, decidi esperar a próxima frase dele ser concluída para comunicar a minha total perda de condição de continuar aquela conversa. “Melhor tu ir dormir agora”, eu diria. E assim, abriria caminho para também me entregar a meu edredon.

 

Passava de meia noite quando a frase foi finalmente concluída. Mas antes que eu dissesse qualquer coisa, o  telefone dele tocou. Uma emergência. E, embora nos conheçamos bem, e há mais de vinte anos, dividimos ali nosso momento de maior intimidade. Ver meu amigo sabido e livre diante de um medo que lhe tirou a expressão que sempre traz no rosto, foi pra lá de revelador. Sabemos, claro, que os nossos não são a projeção que fazemos deles. Sabemos que nenhum de nós é uma massa homogênea diante do mundo, mas ver um lado desconhecido de quem pensamos já conhecer tanto, assim de pertinho, pode ser impressionante. Mais do que isso, se deixar ver para além do que escolhemos apresentar, desarmado diante de um outro, é, sem dúvida,  um ato de muita coragem.

 

Acordei pensando sobre minha tremedeira sem lugar e sobre a nossa dificuldade em estabelecer uma data para nos encontrarmos. Penso que nada foi à toa.  Era importante que tivesse acontecido exatamente assim. Sigo o admirando. Grandemente. Boa semana, queridos!

 

Roberta D´Albuquerque é psicanalista, autora de Quem manda aqui sou eu e escreve semanalmente para A Gazeta e outros 17 veículos no Brasil, Estados Unidos e Canadá.

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