Lavo não. “Deixa aí que eu dou um tapinha”. Não se dá tapinha em louça. Ou vai até enxugar a pia, ou é melhor nem encostar. Se eu deixo, dá nisso. Vê que lixo. Dezessete pratos, todos os talheres da diária, mais meia dúzia do faqueiro de festa, copo empilhado em grupo de três, quatro panelas, duas travessas. Conto mesmo. Fora o resto que eu nem consigo ver daqui. Não tem uma caneca limpa pra pôr na mesa. Xícara nem pensar. Vou tomar café no copo de uísque. Quero ver reclamar. Desde segunda que eu dou conta disso aqui. Um dia que eu fico fora e a cozinha tá essa cafonalha. Pra quê usaram quatro panelas se tem uma sacola do ifood na mesa?
Pense na vontade de bater pra machucar. Tapão. Tô até vendo. Passa, liga a caixa de som, lava dois copinhos, um garfo, a frigideira, outro copo e vai olhar o telefone. A mesma esponja. Fica tudo com cheiro de ovo. Tem que ter método. Primeiro os copos, depois as xícaras, potes, píres, pratos, o raso, o de jantar e o fundo, talheres, travessas e só aí as panelas. Por ordem de sujeira. É difícil isso? Eu vou botar taça de cristal pros meninos tomarem leite. Quebrar, quebrou. Lavo não. Sabe o que mais me irrita? A pilha disforme. Olhe, quando eu vejo uma panela entre dois pratos na pia. Sei não. Um de sopa, um píres, um raso, outro de sopa. Cai a mão arrumar? Panela nunca, em nenhuma circunstância, entra na pia. Deus me perdoe, mas me dá vontade de matar. Faca de corte não entra na pia, travessa não entra na pia. Se comeu ovo, tem que passar uma aguinha no prato, depois vai na pia. Copo não se empilha. Copo de medida não é copo. Colher de medida não é colher. Recicláveis tem que lavar e deixar secar antes de jogar no lixo. Se eu abrir esse lixinho e encontrar um pote de iogurte sujo. Se eu abrir esse lixinho e encontrar uma colher dentro de um pote de iogurte. Ó praí. Não disse. Já já acordam. O pequeno vai querer um ovinho frito, “com a gema bem molinha, mamãe”. O maior, um mexido. Ele vai procurar o suporte do ovo mollet. “Tu viu?”. Vi, tá aí na pia, dentro de uma panela, dois pratos por cima. Lavo não. Agora, pergunta se alguém comprou ovo. Na minha semana de fazer mercado, tinha até nutella no café da manhã. Se brincar ficou bebendo e esqueceu o pedido da feira. Bem feito. Vai acordar com sede. Vai abrir a geladeira pra tomar água e a garrafa tá lá vazia. Porque nessa casa, se guarda garrafa vazia na geladeira. Que tal? Quer ver. Não disse. Nem copo de uísque pra eu tomar café. Aí, tô até vendo, “cadê meu prato do Boku no Hero?”, “cadê o do Naruto?”. Tudo sujo. Lavo não. Vão comer na louça de festa. Quebrar, quebrou. E vão comer o quê? Olhe, se não tiver pão, eu saio dessa casa pra nunca mais. Rapaz, nem pra comprar um pão. Nem manteiga tem. O que eles fizeram com a manteiga? Esse povo não é gente não. Eu vou levar os meninos na padaria e deixar esse cara aí dando os tapinhas dele. Quer dizer, eu vou sozinha na padaria. Deus me perdoe. Faz de conta que o voo atrasou. Se brincar trago pão, ovo e manteiga. Agora lavar, lavo não.
Roberta D´Albuquerque é psicanalista, autora de Quem manda aqui sou eu e escreve semanalmente para A Gazeta do Acre e outros 17 veículos no Brasil, Estados Unidos e Canadá.