Com a seca, o nível dos rios baixa e acaba revelando mistérios e curiosidades que ficam escondidos sob as águas barrentas e caudalosas nos demais períodos do ano. É o caso da história da navegação nos rios do Acre, esquecida no fundo dos leitos, e que, nessa época, reaparece, quando grandes carcaças das embarcações que naufragaram, provavelmente no século passado, na época dos ciclos da borracha, acabam ficando expostas.
Um verdadeiro museu submerso, que guarda parte da memória de como era a vida nos seringais, quando o transporte na região era feito exclusivamente por meio fluvial, conforme lembra o historiador Marcos Vinícius Neves à reportagem do site A Gazeta do Acre.
“Tem aquele ditado: bocado comido, bocado esquecido. Isso se aplica bem à navegação a vapor nos rios acreanos, porque hoje é fácil ignorar o fato de que, pelo menos, até a década de 40, no século 20, ou seja, mais da metade da história do Acre, só era possível chegar e sair do Acre pela navegação, com os barcos, especialmente, os barcos a vapor. Não tinha avião, não tinha estrada… A partir daí, tem-se a noção da importância de um transporte que era essencial.”, relata o historiador.
Entre as partes que ficam aparentes agora com a seca, caldeiras inteiras, provavelmente dos navios a vapor da época, que, mesmo deterioradas pela ação corrosiva do tempo, chamam a atenção e impressionam, principalmente, pelo tamanho, já que, atualmente, não se vê navegando nos rios acreanos nada maior do que os batelões.
Para se ter uma ideia do tamanho das embarcações da época, lembra Marcos Vinícius, a parte do meio da ponte metálica de Rio Branco deveria subir para que os vapores pudessem passar. “Como foi construída muito tardiamente e a navegação já tinha praticamente acabado, com abertura da BR, na direção de Cuiabá, as roldanas que deveriam elevar a ponte nem chegaram a ser instaladas, e ela acabou sendo construída fixa, mas, originalmente, o meio era para ser levadiço, para viabilizar passagem aos navios. Daí, se tem ideia da importância da navegação, até os anos 60, porque, mesmo com a chegada dos aviões, nos anos 40, os voos ainda eram tão raros que a navegação continuou sendo importante. Era uma navegação intensa, era grande a quantidade de navios que subia e descia todos os dias com mercadorias e passageiros até onde a quantidade e profundidade de água permitia.”, relata.
Estima-se que muitos afundaram nos rios do Acre, dadas as características que dificultavam as manobras, com a grande quantidade de curvas próximas umas às outras devido à sinuosidade das calhas, que também são estreitas, somente permitindo a navegação em tempos de cheia.
“Normalmente, os grandes vapores só entravam nos rios depois de embarcar o prático, que era o profissional que conhecia bem aquele determinado rio e sabia o lugar onde tinham salões e os lugares perigosos para encalhar ou grandes troncos submersos que pudessem levar ao naufrágio do navio, mas não só isso. Os rios acreanos são muito meândricos, tem muitas curvas muito apertadas, e para fazê-las, com os vapores gigantes, às vezes era necessário jogar uma corrente na água para segurar o navio e ele embicar a frente para fazer a próxima curva. Além de um processo demorado de subida dos rios, era muito difícil. Não era coisa para amador. Só craque que pilotava os navios ou atuava como prático para viabilizar isso.”, assinalou Neves.
Ainda de acordo com ele, a velocidade com que o nível das águas sobe e desce também é um fator curioso que causou muitos encalhamentos e naufrágios. “O repiquete acontece e, numa noite, sobe 8 ou 9 metros. A vazante também é muito rápida e, por isso, tem muitas histórias da época do primeiro ciclo da borracha, entre 1880 e 1913, em que o vapor entrava, desembarcava a mercadoria que trazia de Belém ou Manaus, carregava a borracha, e aí acabava a água, e ele ficava parado e não tinha como sair e tinha que esperar quase um ano para o rio pegar água de novo no próximo período de chuva para poder voltar a navegar. Então, não foram poucos os navios que naufragaram por isso, porque tentavam arriscar assim mesmo e acabam naufragando.”, contou.
As carcaças
Pelo menos três carcaças que ficam aparentes nessa época do ano provam o que diz a história contada por Marcos Vinícius. Uma em Tarauacá, no rio Muru; outra em Sena Madureira, no rio Iaco; e uma terceira, em Plácido de Castro, no rio Acre.
Entre as terras do Capatará e o Polo Moreno Maia, na outra margem do rio Acre, a cerca de quatro horas de barco de Rio Branco, na região de Plácido de Castro, existe uma carcaça cuja extensão quase atravessa o rio. Este é um dos que deve ter afundado entre 1870 e 1912, segundo o historiador. Uma reportagem recente da equipe do repórter Adailson Oliveira, da TV Gazeta, mostrou imagens dos restos da embarcação e o testemunho de Perpétuo Xavier, de 82 anos, morador da região desde 1972. Segundo ele, o nome do vapor era Lauro Sodré e pegou fogo vindo a descer cerca de 2 km rio abaixo até bater no barranco e afundar na lateral onde está encalhado em meio a balseiros até hoje, onde na época era o Seringal Corredeira.
Em Tarauacá também aparece uma dessas carcaças na vazante do rio Muru. Uma caldeira quase que intacta próxima à comunidade de Vitória Velha que também deve ter naufragado no período do ciclo da borracha, entre 1870 e 1912. Histórias contadas pela população local dão conta de que o naufrágio aconteceu durante o desembarque da mercadoria, outros dizem que foi acidente e há quem acredite que foi proposital, segundo relata a professora Sebastiana Nobre, bisneta de José Galera dos Santos, o popular “Carrapicho”, figura conhecida no município que, inclusive dá nome ao aeroporto local. “Dizem também que estava tendo uma festa no barco e que ele afundou porque tinha muito peso e foi quando começou um incêndio.”, disse.
A carcaça que aparece no Iaco, em Sena Madureira, pode ter afundando em 1948 ao bater em um tronco de árvore. Segundo relato da publicitária Charlene Lima, em suas redes sociais, é o Curuçá. “Desde criança, quando viajávamos pelo rio Iaco nessa época de seca, podia observar o que seria a caldeira de um navio que naufragou no poço serraria. Essa história sempre me chamou a atenção e sempre tive curiosidade de me aproximar. Agora adulta, matei a vontade de criança. Procurei meu amigo Arnoudo Nunes, um historiador de Sena Madureira, para aprofundar as informações sobre a misteriosa história do ‘navio afundando’ que cultivei minha infância inteira. E ele me explicou que o Curuçá era um barco a vapor, com capacidade de carga para 320 t, […] e que foi muito usado no transporte de gêneros alimentícios e mercadorias para os seringais dos rios Caeté, Chandles, Iaco, Macauã e Purus em Sena Madureira […].”, escreveu.