Eloiso Ermelindo Oliveira, ou Sorriso, como é chamado há anos, é daquelas pessoas simples e com uma grande história de superação, marcada pela miséria, traumas e recomeços. Nascido em Itu, São Paulo, Sorriso viveu nas ruas por 25 anos e, em novembro de 2021, completará 10 anos que está fora delas. Sobrevivente da Chacina da Sé, atualmente, ele vive em Rio Branco, para onde trouxe o “Movimento da População de Rua” e, há três meses, está empregado na prefeitura da capital.
Para entendermos a história e a trajetória de Sorriso, precisamos voltar em 1985, quando ele tinha 17 anos e acabou saindo de casa. Filho de pai e mãe diagnosticados com hanseníase, ele se viu sem opção de moradia, quando os pais se separaram e estavam em difíceis condições de saúde. Foi então que ele começou a viver pelo Centro de São Paulo, onde ficou até 2011, vendendo papelão, o que lhe rendia R$ 0,25 por dia, e tomando uma caneca de sopa. Fora da curva, ele ainda conseguiu passar todo este tempo, em situação de vulnerabilidade, sem ingerir bebida alcóolica ou usar drogas, garante.
“Eu não usei, não porque não chegou até a mim, mas porque eu não quis, eu acho que o caráter da pessoa não se troca por um cigarro ou por um copo de cerveja ou de pinga. O caminho certo não é a droga ou o álcool, o que muda a vida das pessoas é o trabalho e a oportunidade que a sociedade dá para essas pessoas”, afirma Sorriso.
Foi nas ruas, também, que ele ganhou o apelido, que virou seu nome oficial. Não foi à toa. Alegre, otimista e divertido, ele conta que sua personalidade lhe rendeu o batismo dos colegas também desabrigados. “Naquela crise, que ninguém tinha dinheiro, eu morava na rua e ficava sorrindo. Meus colegas falaram: ‘Não vou te chamar de Heloíso não, vou de te chamar de Sorriso, porque você traz alegria para as pessoas, pelo jeito que você é!’ E assim ficou”, recorda.
Apesar do otimismo, Eloiso ou Sorriso não tem como minimizar o horror que foi a série de ataques aos moradores de rua da Praça da Sé, em São Paulo. Conhecida como Massacre ou Chacina da Sé, sete pessoas morreram e seis ficaram com sequelas irreversíveis, após cinco policiais militares e um segurança particular agredirem os moradores enquanto eles dormiam. O caso aconteceu entre os dias 19 e 22 de agosto de 2004, e as investigações policiais apontaram que os militares queriam matar pessoas que sabiam do envolvimento deles com o tráfico de drogas.
Sorriso foi uma das pessoas que conseguiu sobreviver aos ataques. Ele conta que foram necessários cinco anos para se livrar do trauma psicológico, mas que até hoje sofre de distúrbios do sono. “Tenho parte do meu sono prejudicada ainda, seu eu deitar cedo, quando dá entre 3h e 4h da manhã, eu já acordo e não consigo mais dormir”, comenta.
O período na rua, após a chacina, só contribuiu para os medos e o constante estado de alerta em que eles viviam. “Você não dormia na rua, você vegetava! Durante a noite, se alguém buzinava, você já ficava assustado, quando passava uma moto estourando o escapamento, a gente já pensava que tinha morrido alguém. Passamos por psicólogo, psiquiatra, e hoje eu falo que esse trauma sobrecarregou a mente da gente”, lamenta Sorriso.
Foram mais seis anos vivendo nas ruas, após Chacina, até que decidiu “sair” das situação em que vivia, indo para Sorocaba. A situação não foi tão fácil e ele ainda precisou ficar um mês dormindo em um praça. Mas, foi em Sorocaba, durante um encontro de filhos separados de pais com hanseníase, que ele deu um depoimento e descobriu outro caminho para mudar de vida.
Sorriso trocou as ruas pelo microfone
Após seu depoimento sobre sua relação com a família e a vida nas ruas, Sorriso foi elogiado e sugeriram uma nova função para ele. “Todo mundo chegou dizendo ‘O senhor tem um dom muito maravilhoso, que outros não tem: o dom da palavra’. E, então, eu comecei a fazer palestras, troquei a rua pelo microfone, tenho muito orgulho”, conta.
Sorriso começou a dar palestras sobre sua antiga vida como morador de rua, sempre com o intuito de sensibilizar o olhar da sociedade e motivar outras pessoas. Sem estudo escolar, ele já palestrou em universidades e órgãos públicos. “Quando perguntam, eu digo que já sou PHD, minha escola foi a rua, pois foram 25 anos, foi minha formação, graduação, mestrado e o doutorado”, brinca Sorriso.
E foi em uma dessas palestras, no Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Mohan), em Minas Gerais, que ele conheceu Tião Viana, que, na época, era governador do Acre. Sorriso conta que o político disse que queria vê-lo no Acre, falando sobre sua história.
“Quando recebi essa oportunidade, não medi esforços. Fui fazer uma visita, de uma palestra da Polícia Civil, através de um grupo de psicologia e, nesse momento, eu vi a situação da rua em Rio Branco. Muita gente abandonada, e a sociedade nem aí, a prefeitura da época também não estava nem aí. Percebi que havia muitas pessoas morrendo no Acre, através da droga, da prostituição, e decidi ficar para ajudar na luta da população de rua”, afirma.
Em 2017, ele se mudou para o Acre e, onde começou a produzir e vender sabão para se sustentar. No ano seguinte, trouxe o Movimento da População de Rua, no qual, hoje, é coordenador afastado interinamente. O grupo realiza seminários e encontros para buscar melhorias para a população que vive nas ruas. Há três meses, aos 54 anos, Sorriso recebeu uma proposta que modificou ainda mais sua vida, a de trabalhar na Secretaria da Assistência Social e Direitos Humanos de Rio Branco.
No cargo de recepcionista, ele conta que ajuda em vários setores por meio de sua experiência e visão construída a partir da realidade que viveu por 25 anos. “Quero mostrar para as pessoas em situação de vulnerabilidade que há esperança para mudar. Tenho certeza que Rio Branco tem condições de criar geração de renda!”, ele explica.
De morador de rua, sobrevivente de uma chacina a palestrante e cidadão empregado, Sorriso é uma feliz ressalva, dentro da cruel realidade de desigualdade social e miséria que assola nosso país. O número de pessoas em situação de rua no Brasil cresceu 140%, entre 2012 e março de 2020, chegando a quase 222 mil pessoas, de acordo com uma nota técnica do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Histórias como a do Sorriso são raras, por isso merecem ser contadas, não em forma de lição, mas para questionar a situação de milhares de pessoas que lutam pela sobrevivência em situações desumanas.