Únicos, em tamanho e formato, meus pés, ora aos calos, espremidos numa sapatilha 35, ora bambos, numa 36, percorrem, há anos doídos, os pátios do castelo. O único sapato confortável que tive, foi arremessado sacada abaixo pelo meu menino mais velho quando ele ainda não tinha nem um ano. Era frágil – o sapato, não o menino – e quebrou-se em um sem fim de pedacinhos. Já vou no quarto herdeiro e, desde então, minha única distração é levar meus pés 35,5 para o outlet, logo na saída das muralhas. É onde estou agora, de novo, em busca de algo que me caiba. Na fila do sorvete, vejo Drizella, bem na altura da loja de aviamentos. Até as fitas de cetim da vitrine param de voar para acompanhar minha tentativa desajeitada de evitar a saudação. Ela, ao menos três sacolas para cada braço, se aproxima com passinhos resolutos de quem, decerto, não tem band-aids colados no dedão.
– Menina, quanto tempo – diz, enquanto examina cada movimento de minhas mãos vazias de sacola e cheias de não saber o que fazer – tás fazendo o que aqui?
Antes mesmo de pensar numa resposta, percebo que um dos botões de meu vestido azul, o da cintura, de todos o mais malvado, fecha brodagem com Drizella, e dá início ao espetáculo. Um “puft” seguido do convite aos vizinhos. Abrem pelo menos uns 4. Os gominhos de gordura que acumulei nos anos de banquete, quando ainda havia banquetes, estão mais livres do que eu nunca estive.
– Eita! Abriu aí? Bem, aperto você não vai passar – e riu se tomando por espertinha – aqui tá cheio de loja, a gente te compra alguma coisa.
Os banquetes não acabaram à toa. O príncipe herdeiro, como vocês bem sabem, frequentou bailes demais e aulas de administração de menos. O reino, por tanto, atravessava uma crise financeira daquelas. Não há um único aldeão que não ostente, entre os seus pertences, uma joia, uma prataria, ou um tapete com o monograma real. Tudo adquirido nos bazares que organizamos para tentar desencantar a dívida – uma fábula.
– Imagina, querida. Não é necessário. Eu já estava mesmo indo pra casa.
– E os meninos?
– Ficaram com o Grão-duque, uns amores – respondo já fazendo sinal para o cocheiro que me aguarda nos portões do outlet
– E tua madrinha?
– Aparece vez por outra – mentira – Claro, mando as suas lembranças.
Apartadas por dois “até logos” e, no máximo, dois passinhos, sou eu a escolhida para o presente que uma pomba falante me deixa nos cabelos.
– Ui, desculpa. É tu, Cinderela, quanto tempo!
Roberta D´Albuquerque é psicanalista, autora de Quem manda aqui sou eu e escreve semanalmente para A Gazeta do Acre e outros 17 veículos no Brasil, Estados Unidos e Canadá.