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Esqueço nada

Lembro de meu pai comprando dipn´lik escondido de minha mãe quando me buscava na loja maçônica. Lembro de ter feito aula de reforço de matemática com um professor maçom que usava a loja como locação. Lembro do telefone dele. “Pensa no natal e se senta: 761 2560”. Lembro que mainha chamava o raspa raspa da praia de coquetel de ameba. Lembro de ir ao dentista e ao oftalmo todo ano, durante as férias. Um janeiro, desmaiei no oftalmo, na hora de dilatar a pupila, e chorei na dentista. Tinha um botão vermelho na lateral da cadeira. Apertei.  Ela desceu sem controle, bateu na bandeja, derrubou aquele monte de coisinha esterilizada e disparou o sugador no chão do consultório. Mudamos de dentista e de oftalmo. Lembro de um natal que reclamei dos machucados do aparelho. Meu pai ficou com pena e tentou arrancar com um alicate. O alicate escapou e ele quebrou meu incisivo lateral pela metade. Lembro da prefeitura mandar desligar a energia da cidade na meia noite do 31 de dezembro por 2 minutos.

Lembro de um pastor alemão que a gente tinha que, numa dessas madrugadas, pulou na piscina assustado. Painho teve que entrar na água gelada pra resgatá-lo. O nome dele era Indiana Jones. Lembro de passar um veraneio inteiro falando como carioca. Quando eu me distraía e voltava para o pernambuquês original, fingia estar imitando o sotaque do povo de casa. Lembro da primeira vez que fomos ao Rio e a moça a quem pedimos informação disse: “vai em frente toda vida, toda vida, até a morte”. Eu tive medo. Lembro dos picolés Yopa que a gente via na TV. Eles não eram vendidos em Recife. Nessa mesma viagem, mainha disse que podíamos tomar quantos quiséssemos. Toda vida, toda vida, até a morte. Tinha de Chokito, de Lollo e de Leite Moça.

Lembro de minha irmã me convencer a entrar no guarda-roupa para ver a figurinha que brilha no escuro da Elma Chips e depois me trancar à chave. Lembro dela me oferecendo um xampu pra cheirar no supermercado e apertando o frasco até melar meu nariz. Lembro do primeiro dia que usei o sutiã que herdei de minha irmã. Lavei no banho. Cheirava a Seda linha pró, criado pelo Elida Hair Institute. Lembro de um aniversário na casa de Glauber. George me abraçou com tanta força que meu joelho deslocou. Lembro de tomar chuvisco e vinho Jatobá no Festival de Inverno de Garanhuns e me sentir uma jovem inconsequente de filme.

Mais pelo chuvisco do que pelo vinho. Lembro de um show, também no Festival. O Reginaldo Rossi entrou dando boa noite a Caruaru. Lembro da Banda de Pífanos de Caruaru tocando Asa Branca no SESC. Lembro do Caetano também no SESC. Lembro de chorar com Bethânia do começo ao fim do Frevo número 1. Lembro da Karina Buhr tocando rabeca no enterro do Chico Science. Eu vi pela TV. Lembro dos caboclos de lança do Piaba de Ouro escoltando o corpo até o carro de bombeiros. Era 2 de fevereiro, semana do pré-carnaval. Lembro de ainda achar tinta azul atrás da orelha na quinta-feira. O bloco do Smurfs saía no sábado. Lembro de ter medo de verdade quando o Papai Smurf do bloco gritou “lá vem o Gargamel” e todo mundo saiu correndo ladeira abaixo. Lembro de tomar Forten e Memorial desde pequena e me sentir fraca e esquecida.

Roberta D´Albuquerque é psicanalista, autora de Quem manda aqui sou eu e escreve semanalmente para A Gazeta do Acre e outros 17 veículos no Brasil, Estados Unidos e Canadá.

 

 

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