Há 118 anos, no dia 17 de novembro de 1903, os governos do Brasil e Bolívia assinaram o Tratado de Petrópolis, documento que marcou o encerramento da disputa entre os dois países pelo território do Acre e anexou quase 200 mil quilômetros quadrados de território para que cerca de 60 mil seringueiros e suas famílias pudessem trabalhar na extração da borracha.
“O Tratado de Petrópolis foi completamente diferente de todos os outros tratados da história do Brasil e significou um grande desafio para a diplomacia brasileira porque todos os outros haviam precedentes históricos e diplomáticos que garantiam ao país direitos sobre aquelas terras que estavam sendo negociadas. A diplomacia brasileira usou todas as diferentes modalidades de negociação possíveis nos tratados anteriores, seja a negociação direta ou a definição de um arbitramento de um país neutro para decidir sobre determinada questão”, explica o historiador Marcos Vinícius Neves.
Na época, explica Neves, “o Brasil efetivamente não tinha nenhum direito sobre as terras do Acre, o que fez com que o Barão do Rio Branco tivesse que traçar uma estratégia completamente diferenciada em relação à todos os outros”, diz.
“Durante todo o período da ocupação boliviana no Acre, que corresponde ao período da Revolução Acreana (1899-1902), o governo brasileiro foi taxativo. As terras acreanas eram incontestavelmente bolivianas, não havia nenhuma base legal, diplomática ou política para se contestar o direito boliviano sobre as terras acreanas. Para confirmar ainda mais, o governo brasileiro permitiu que Dom José Paravicini viesse à partir de Manaus para o Acre para iniciar a ocupação boliviana no início de 1899. Quando o governo brasileiro manda a Marinha para cá e prende Galvez, que acaba com o Estado independente do Acre em 15 de março de 1900, eles devolvem o Acre para a Bolívia”, destaca Neves.
O Acre era habitado na sua maioria por brasileiros que exploravam o seringal e que não acatavam as ordens expressas do comando boliviano e passaram a requerer a incorporação desta área ao Brasil.
“Acontece que durante o período da Revolução Acreana, com a iniciativa dos brasileiros que moravam aqui e que não aceitavam a dominação boliviana, a questão do Acre, como era chamada nos jornais da época, ganhou a opinião pública e a imprensa nacional e internacional. Ela envolvia muitas coisas, uma renda fabulosa sobre a borracha acreana, os interesses econômicos eram poderosos acerca disso, envolvia a questão de soberania nacional porque reconhecer a dominação boliviana aqui e principalmente o arrendamento que a Bolívia Syndicate, uma grande companhia de capital norte-americana, significava também reconhecer um direito da navegação internacional dos rios amazônicos no trecho do Brasil. Se o Bolívia Syndicate arrenda o Acre, ele só seria viável se os navios ingleses e norte-americanos tiverem livre navegação nos rios da Amazônia, o que afrontava diretamente a soberania brasileira sobre esses rios que correm em seu território”.
José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco, logo no início de sua gestão como Ministro das Relações Exteriores, defrontou-se com a questão do Acre.
“Além disso, tinha a questão político social de uma populção predominantemente brasileira. Pelos antecedentes de ocupação do continente latino americano, deveria ser por direito brasileiro. Isso fez com que houvesse uma intensa polêmica na imprensa relacionada a isso. As principais figuras da República brasileira, os principais pensadores como Ruy Barbosa, rotineiramente iam aos jornais escrever artigos de opinião sobre essa questão. Por consequência disso, quando acaba a presidência de Campos Sales, que negava o Acre, e quando Rodrigues Alves assume a Presidência da República no início de 1903, exatamente quando os brasileiros tem a vitória final sobre os bolivianos em Porto Acre. Eles lutaram por conta própria, com seus próprios sacrifícios e foram capazes de vencer a guerra contra os bolivianos. Pressionado pela opinião pública e por essa situação econômica e social, Rodrigues Alves nomeou o Barão do Rio Branco como ministro das relações exteriores e mandou que ele resolvesse a situação do Acre”.
O Barão do Rio Branco iniciou uma negociação com a Bolívia. “Ele já tinha várias experiências de vitórias diplomáticas, mas nesse caso não tinha direitos históricos e territoriais anteriores, teve que traçar uma nova estratégia, completamente inédita para negociar. Primeiro ele mandou Assis Brasil aos Estados Unidos para negociar com os capitalistas do Bolívia Syndicate sobre a desistência do contrato de arrendamento. Ao mesmo tempo, ele deslocou tropas federais para Mato Grosso e para o Acre, exercendo uma pressão militar muito intensa. De fato, ele conseguiu a desistência do Bolívia Syndicate pela indenização de 110 mil libras esterlinas, que era uma fortuna na época. Com a desistência, o Barão consegue um acordo preliminar para parar o conflito enquanto se negocia uma solução, já que a Bolívia tinha vindo com todo o seu exército para a fronteira, tendo à frente o próprio presidente do país, o General Pando e estavam prestes a entrar em confronto com Plácido de Castro”.
Ficou acertado de que a Bolívia abriria mão do estado do Acre em troca de territórios brasileiros do estado do Mato Grosso e receberia também a quantia de 2 milhões de libras esterlinas.
“A Bolívia queria o arbitramento e o Barão não aceitou, pois sabia que iria perder. Ele mandou sumir com alguns mapas que reconheciam o direito da Bolívia e propôs uma negociação diferenciada, em que o Brasil iria comprar os direitos da Bolívia sobre esse território. Além disso, ele cedeu algumas áreas de terra na fronteira com o Mato Grosso. Foi proposto pagar os 2 milhões de libras esterlinas de indenização à Bolívia em duas prestações de 1 milhão e a construção da ferrovia Madeira Mamoré, porque não tendo a Acre, a Bolívia não teria como escoar sua própria borracha produzida no seu território até o Rio Amazonas e de lá fazer a exporação para os Estados Unidos e Europa, porque o Rio Madeira tinha o problema das cachoeiras e era impossível os navios passarem por elas. Os bolivianos esperavam que a ferrovia fosse construída no lado boliviano, mas foi construída no lado brasileiro. Quando a ferrovia ficou pronta, em 1912, foi o último ano do ciclo da borracha. Então a partir de 1913 a Madeira Mamoré perdeu sua utilidade”.
O Barão do Rio Branco intermediou diplomaticamente propondo um acordo entre o Brasil e a Bolívia, que ficou conhecido como o Tratado de Petrópolis. “O Barão conseguiu sua grande vitória. A estratégia para se chegar até a assinatura do tratado foi tão sofisticada e complexa que eleva o Barão a um herói nacional. Foi efetivamente uma grande conquista da diplomacia brasileira, sob a qual ainda tem muita coisa a ser conhecida na abertura dos documentos do sigilo eterno. É provavel que no futuro teremos muitas surpresas relacionadas a isso”, conta Neves.
O historiador acrescenta que, “com a anexação do Acre ao Brasil e a criação do território federal do Acre, para que o governo brasileiro ficasse com a renda da borracha acreana e pagasse todas as despesas que teve com o Estado, o Brasil acabou criando a figura dos territórios federais, que depois foram implantados em outras regiões. O Acre marcou várias mudanças tanto na política exterior quanto na própria política da federação. Assim, a questão do Tratado de Petrópolis resolveu a disputa com a Bolívia. Depois disso continuaram os conflitos com os peruanos, em 1904 e 1905, no Purus e no Juruá, que só foram resolvidos definitivamente com a assinatura do Tratado do Rio de Janeiro em 1909, quando a questão formal territorial do Acre ficou totalmente concluída. Mas isso tudo foi fruto do Tratado de Petrópolis, que efetivamente possibilitou todos esses ganhos e conquistas para o Brasil”, finalizou Marcos.