Estão proibidos, a partir de sempre, amigos secretos em ambientes de trabalho. Se forem do tipo amigo ladrão, “ah, vamos lá, vai ser divertido”, cabe multa. Se houver na equipe algum resquício de mágoa, sentimento de injustiça, ódio do chefe, aí, meu filho, cabe desligamento. Ainda assim o povo insiste. Eu mesma já participei de vários e tinha mágoa, injustiça, ódio e chefe de sobra. Em todos, quase deu demissão que é desligamento só que em português.
A coisa normalmente começa na boa vontade. Compra-se um presente bom, ainda que se saiba que quanto maior o salário, menor o esforço – o que sai de brinde reembalado da mão das altas hierarquias corporativas, nossa senhora; promete-se não beber mais do que um drink, que festa da firma não é festa, é hora extra; conversa-se pouco; fala-se baixo; pensa-se na avaliação de desempenho que rola depois das férias coletivas; projeta-se o aumento prometidodesde o ano passado para o mês que vem que “agora vai”. Mas isso na primeira meia hora, né? Esquentou o roubo, minha filha, ninguém é de ninguém.
Havia na equipe de um trabalho que tive, quase no século passado, um certo desafeto -horror, asco, desejo de morte – pelo diretor de departamento do qual eu fazia parte. Um moço muito cheio de si que abocanhou uma caixa de CDs, veja bem, do Chico Buarque lá pelo segundo pacote aberto. Foi logo mandando um “é meu e ai de quem tocar”. O calças vincadas e polos bordadas devia aos estagiários litros de lágrimas e noites mal dormidas, a nós, contratados no piso do salário e da carreira, devia quase a totalidade das almas. De maneira que combinamos que todos nós roubaríamos qualquer presente que lhe agradasse. A cada roubo, uma menção ao Chico só pra lembrar o gosto da perda. O primeiro foi Zé Guilherme, estagiário calouro, assobiando baixinho um Apesar de você. Teve Lili cambaleante errando a letra de Cálice e Isa, conciliadora, com Gente Humilde.
Ele pediu a palavra, disse que admirava o bom humor da equipe e até aplaudiu o coro de “vai trabalhar vagabundo” que contou, inclusive, com a voz do diretor de RH já de gravata frouxa e língua presa.
Quando Vandeca, secretária fiel até a terceira dose de gin, subiu na mesa e limpou a garganta num longo e raivoso “ele é feito pra apanhar, ele é bom de cuspir”, nosso moço parou de rir. Tirou da mão do sócio a caixa do Chico, jogou tudo no chão, esmurrou e pisoteou os cedezinhos até melar o tapete de sangue. A roda de samba acabou, mas foi bonito, viu?
Roberta D´Albuquerque é psicanalista, autora de Quem manda aqui sou eu e escreve semanalmente para A Gazeta do Acre e outros 17 veículos no Brasil, Estados Unidos e Canadá.