Até o final do Século XX imaginava-se que os primitivos habitantes do Acre seriam caçadores-coletores que viviam em bandos igualitários e que se moviam constantemente de um local para outro. Por essa razão, havia a noção generalizada de que os nossos habitantes primitivos seriam incapazes de deixar marcas de sua passagem na terra e de alterar e controlar o meio ambiente do seu entorno.
A descoberta de numerosos Geoglifos no sudoeste da Amazônia desestabilizou essa opinião.
Construir Geoglifos de centenas de metros de diâmetro usando pás de madeira e cestos de cipó ou taboca para mover milhares de metros cúbicos de terra era um empreendimento de longo prazo (demoravam meses ou anos) que demandavam centenas ou milhares trabalhadores.
Durante o período de construção de um Geoglifo, os numerosos trabalhadores envolvidos precisavam ser alimentados. Assim, uma parte dos trabalhadores envolvidos precisava caçar, pescar, plantar, colher e cozinhar para prover a comida para os demais.
Por essa razão, deve-se admitir que os grupos indígenas responsáveis pela construção dos Geoglifos tinham, de alguma forma, uma governança centralizada que assumia a responsabilidade pelo planejamento, organização e administração dos extenuantes trabalhos de escavação.
Assumimos essa proposição com base no fato de que os seres humanos raramente se voluntariam para passar seus dias cavando e removendo a terra para construir monumentos públicos. Era, portanto, indispensável a existência de líderes com prestígio e influência ocupando posições hierárquicas elevadas e respeitadas para induzir “seus súditos” a trabalhar pesado na construção dos monumentais Geoglifos do Acre.
O contexto tecnológico ao tempo da construção dos primeiros Geoglifos, há cerca de 2500 anos, sugere que as ferramentas de escavação e de derrubada da floresta para a instalação dos mesmos eram confeccionadas em madeira e pedra. Não podemos esquecer de citar que nessa época inexistiam animais domesticados para auxiliar no trabalho de movimentação da terra.
Portanto, para levar avante a monumental tarefa de construção dos Geoglifos sob condições tão precárias, a existência de algum nível de autoridade pública ou organização cívico-religiosa era um pré-requisito para a imposição da execução do trabalho oferecendo como retorno alimentação, segurança e conforto espiritual.
Vale ressaltar que esse tipo de organização com autoridades centralizadoras e fortemente hierárquicas sugere que os responsáveis pela construção dos Geoglifos não compartilhavam qualidades organizacionais e, provavelmente tecnológicas, com os indígenas nômades caçadores-coletores encontrados pelos primeiros exploradores portugueses e espanhóis que adentraram a Amazônia a partir de 1500.
Esses povos com uma organização hierárquica sofisticada que construíram os Geoglifos no sudoeste da Amazônia ainda constituem um mistério para a ciência: não se sabe por qual nome eles eram conhecidos ou que língua falavam.
Por isso, se propõe um nome aos mesmos: Civilização Aquiry.
Podemos especular que a Civilização Aquiry, construtora dos Geoglifos do Acre, copiou de outros povos essa forma de “governar” e construir? Ou será que eles mesmos desenvolveram todo o processo?
Apesar de vizinhos, com certeza eles não copiaram dos Incas. Quando os Incas surgiram, com seus monumentos de pedra nos Andes, a Civilização Aquiry já havia desaparecido e a floresta recobria novamente toda a região.
Também podemos sugerir que a “organização governamental” da civilização Aquiry não parece ter decorrido da necessidade de defesa para os seus integrantes, pois os Geoglifos não apresentavam muralhas defensivas, nem eram locais de moradia. Provavelmente eram feitos para festividades e para fazer seus membros sentirem-se conectados espiritualmente com as deidades da natureza.
Sem textos escritos, a obra monumental dos Aquiry é um grande silêncio. Aos poucos os Apurinãs, habitantes da bacia hidrográfica do Purus, em cujas terras se encontram os Geoglifos, buscam, em suas memórias, histórias, lendas e grafismos, recuperar algum significado para os monumentos de terra desses povos ancestrais.
Os Aquiry atuaram em uma escala muito grande no sudoeste da Amazônia. Ao longo de mais de 400 km de extensão eles construíram estradas e monumentos, transformando imensas faixas da paisagem em função das suas necessidades espirituais, agrícolas, de comunicação e de vivência coletiva.
Podemos dizer que há mil anos, em ambas as margens do rio Acre, a paisagem era completamente artificial. Geoglifos de formas variadas, círculos, quadrados, hexágonos e octógonos conectados por estradas e caminhos ocorrem desde a fronteira do Peru e Bolívia, adentrando pelo Brasil, passando pelo Acre e Amazonas até o encontro com rio Purus.
Hoje os Geoglifos são um legado cultural para a humanidade que estão sob pressão e perigo de destruição pela construção de rodovias e o uso de máquinas pesadas para a agricultura mecanizada e para a instalação de fazendas pecuária.
Deve-se notar que apesar da atenção científica para os Geoglifos do Acre, os pesquisadores investigaram apenas uma pequena fração desses monumentos de terra.
Para saber mais:
Ranzi, A. 2021. Geoglifos do Acre – Passado Profundo. Massiambooks, Florianópolis, 155 pp.
Ranzi, A. & Pärssinen, M. 2021. Amazônia – Os Geoglifos e a Civilização Aquiry. Massiambooks, Florianópolis, 203 pp.
*Alceu Ranzi é paleontólogo e professor aposentado da UFAC
**Evandro Ferreira é pesquisador do INPA/AC e do Parque Zoobotânico da UFAC.