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É bom demais

Minha mãe começou a usar óculos aos 4. Mesmo depois da alta que conquistou com a cirurgia de miopia, já perto dos 50, resolveu seguir com eles. Não se reconhecia de olhos pelados. Meu pai usa óculos desde que o conheci e minha irmã entrou para o grupo ainda na adolescência. Dos 12 irmãos de minha mãe, todos usam, dos 4 do meu pai, também. Dos meus mais de 50 primos, não escapa um. De meus amigos, um total de todo mundo. Mas eu não. Eu sempre enxerguei o detalhe do detalhe do detalhe. Eu poderia dizer a cor do laço da fitinha do cabelo de uma formiga recém-nascida. Se fosse o caso. Cor, nitidez, profundidade, nada nunca me passou batido.

Mas os quarenta, minha gente. Os quarenta quando chegam  não querem saber nem de sempre, nem de nunca, nem de todos, nem de nenhum. Começou pelo foco, de levinho o suficiente pra eu alegar o tempo de tela, e “ontem nem dormi tão bem assim”. Daí pro meu dermatologista me dizer que essa testa marcada era caso de oftalmo foi um pulo. Chegando lá, o previsível: cansaço, idade, um grauzinho de nada, mas “tem que fazer”. Fiz não, que formiga não tem nem laço de fita, nem cabelo.

Aí uma falta de foco e uma testa botocada depois, as letras foram ficando miudinhas, rapaz, quase fugiam do livro, o braço foi ficando comprido que só ele, o celular cada vez maior e a qualidade da tela cada vez menor. Uma gastura danada.

Às vezes, eu animava. Mas quando conseguia enxergar a etiqueta de preço das poucas armações de que gostava nas vitrines por aí, desanimava rapidinho. Bom gosto é uma infortúnio. Má vontade também.

Mas a necessidade, minha gente. A necessidade quando chega não tem desânimo nem má vontade, não tem bom gosto nem desgosto. Pois que quatro receitas desobedecidas depois, uma por ano, remarquei a consulta. Vou ainda esse mês. Sabe quando você tá segurando o xixi há horas e vai chegando na porta de casa, aquela vontade saindo do controle e parece que não vai dar tempo de mais nada? Pronto, igualzinho, foi só marcar que parei de ver a formiga completa. Uma barata, um ratinho – um leão, quem sabe – podem passar do meu lado tranquilos que eu não vejo nem a sombra. Não via.

Porque ontem, passei numa banquinha de revista e comprei essa joia preciosa que repousa aqui na minha cara, R$20. É bonita como as das vitrines? Claro que não. Mas que invenção perfeita, que renascimento. Que arquivo de word limpo que eu tô vendo agora na minha frente. É cada letra preta, cada folha branca, cada pelinho do gato no sofá, cada poeira no taco, cada migalha de pão na toalha de mesa, que nossa senhora! Abençoada seja essa sujeira linda, abençoados sejam vocês e todos os oftalmos e donos de banca desse Brasil. Boa semana, queridos. Enxergar é bom demais.

 

 

paula: